A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condena o Brasil no caso da Guerrilha do Araguaia a investigar, processar e, se for o caso, punir os crimes contra a humanidade cometidos pelos agentes do Estado, durante a ditadura militar brasileira (1964-1985) será cumprida. A conclusão é do penalista Luiz Flávio Gomes. Para ele, isso irá acontecer porque o governo tem responsabilidades internacionais e quer ser membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.
Luiz Flávio Gomes falou sobre o assunto na Jornada “Crimes da Ditadura”, que aconteceu em São Paulo, na última quinta-feira (12/5), antes do lançamento do livro Crimes da Ditadura Militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A obra é organizada por ele e por Valerio de Oliveira Mazzuoli.
Segundo Mazzuoli, o Direito Internacional está em um novo momento, que tem sido pouco compreendido pelos operadores de Direito brasileiro e pelo próprio STF. “O avanço dos Direitos Humanos no Direito Internacional foi conquistado com muito sangue derramado no pós-guerra, mas parece que foge a nossa brasilianidade”, disse.
Ele acredita na existência do Direito supraconstitucional. Para defender sua tese, informa que o Tribunal Penal Internacional notificou as Supremas Cortes de todo o mundo para que, se o ex-presidente do Sudão, Omar al-Bashir, condenado por crime contra a humanidade, pisar no solo desses países, ele se entregue ao TPI. “Se isso não é direito supraconstitucional não sei o que é.”
Mazzuoli disse que já está superada a fase do Internacionalismo, em que os países consentem em limitar suas soberanias em prol de um interesse maior, que é o da dignidade da pessoa humana. Segundo ele, agora, no Direito Internacional, o momento é do Universalismo, de acordo com o qual não é mais necessário que as convenções internacionais (agora universais) sejam ratificadas, porque os valores que trazem são universais e dizem respeito a todos os cidadãos do planeta.
Ele identifica o universalismo nas sentenças dos Tribunais Penais internacionais em que são feitos controles jurisdicionais de convencionalidade, que consiste em analisar se a lei está adaptada tanto à Constituição quanto aos tratados internacionais.
Nesse sentido, explica que a Corte Interamericana condenou a decisão do STF que, em abril de 2010, declarou constitucional a Lei da Anistia, e assim não revogou a anistia para agentes públicos acusados de cometer crimes comuns durante a ditadura militar, porque o tribunal não fez o controle de convencionalidade. “Nem toda lei vigente é válida. A compatibilidade da lei com a Constituição só garante sua vigência. Devemos analisar sua compatibilidade com os tratados de Direitos Humanos para analisar validade”, diz.
No sentido contrário, ele explica que o STF não pode dizer que o julgamento da Corte não tem validade, já que a competência da Corte Interamericana foi aceita pelo Brasil ao ratificar a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), em 25 de julho de 1992. Além do respeito moral aos nossos vizinhos, diz ele, o STF deve respeitar as vítimas.
Ele chama a atenção para o dia 3 de dezembro de 2008, em que o Supremo declarou inconstitucional a prisão civil de depositário infiel e fez, devidamente, o controle de convencionalidade. Nesse caso, tanto a lei quanto a Constituição brasileira preveem a prisão civil, mas o Supremo considerou que a Convenção Americana de Direitos Humanos a proíbe.
Extinção da punibilidade
Considerando que os crimes da ditadura ocorreram entre 1964 a 1985 e que o prazo de prescrição máximo do Brasil é de 20 anos, Luiz Flávio Gomes deixa claro que os crimes não estão prescritos. Para tanto, apresenta dois argumentos. O primeiro é o de que, de acordo com a jurisprudência pacífica da Corte Interamericana, o crime de desaparecimento é permanente e perdura no tempo, ou seja, enquanto os corpos não forem achados, o crime continua se perpetuando e a prescrição ainda não começou a correr.
Considerando que os crimes da ditadura ocorreram entre 1964 a 1985 e que o prazo de prescrição máximo do Brasil é de 20 anos, Luiz Flávio Gomes deixa claro que os crimes não estão prescritos. Para tanto, apresenta dois argumentos. O primeiro é o de que, de acordo com a jurisprudência pacífica da Corte Interamericana, o crime de desaparecimento é permanente e perdura no tempo, ou seja, enquanto os corpos não forem achados, o crime continua se perpetuando e a prescrição ainda não começou a correr.
O segundo argumento é de que o ius cogens, o direito que emana da ONU, é “super hiper maxi constitucional”, e em uma Resolução da organização, de 1946, é determinado que os crimes contra a humanidade são imprescritíveis.
Sobre os comentários de alguns ministros do STF de que a decisão da Corte só vale no plano moral, político e filosófico, ele entende que isso é um “erro crasso do ponto de vista jurídico”. Até porque ao julgar a prisão civil, em 2008, “o próprio STF reconheceu a força supralegal dos tratados internacionais e agora tem que se curvar ao que decidiu naquela época”.
Segurança pública
Um dos coautores do livro, Marlon Alberto Weichert, procurador da República em São Paulo, que foi perito da Corte Interamericana no caso do Araguaia, contou que, em 10 anos de trabalho com famílias de desaparecidos na época da ditadura, só foram localizados três desaparecidos por causa das dificuldades criadas pelo Estado.
Um dos coautores do livro, Marlon Alberto Weichert, procurador da República em São Paulo, que foi perito da Corte Interamericana no caso do Araguaia, contou que, em 10 anos de trabalho com famílias de desaparecidos na época da ditadura, só foram localizados três desaparecidos por causa das dificuldades criadas pelo Estado.
Weichert explicou que o Direito Internacional prevê que Estados que saíram de períodos de exceção (por ditaduras ou guerras civis) passem por um processo de Justiça de transição, para poderem passar de um modelo autoritário para o democrático.
A Justiça transitória envolve quatro medidas: (i) promoção da verdade, para o país depurar sua história através de instrumentos como a comissão da verdade (que está tramitando no Congresso), e da promoção da justiça, não admitindo que possa haver impunidade pela violação de direitos humanos; (ii) produção da memória para que gerações futuras saibam o que aconteceu e assim isso não se repita; (iii) reforma dos aparatos de segurança; e (iv) reparação.
Consideradas essas medidas, o procurador diz que, com a decisão do caso Araguaia, o Supremo proibiu que se promova a Justiça ao permitir a impunidade, e que o Brasil está longe de ter feito a reforma de aparatos de segurança. Isso porque, ele tem bolsões autoritário nos quais a democracia não consegue chegar, como as Forças Armadas, que ainda usam o Estatuto dos Militares (Lei 6.880/1980), e a Polícia, que mantém suas normas e condutas, mas só mudou o público, que hoje é de pobres excluídos socialmente.
Quanto à Polícia, cita uma pesquisa em que foi constatado que os indicadores de violência policial e de violações de Direitos Humanos dos países que passaram pela Justiça transacional é muito menor do que os que não fizeram. Segundo ele, isso prova que há vínculo entre o país conhecer sua história e melhorar seu futuro. Considerando que o indicador do Brasil tem piorado depois do fim do regime, no país a questão é ainda pior: “não é nem de repetir a história, mas sim de não perpetuá-la”. Segundo ele, no mínimo 30 mil brasileiros foram perseguidos, presos e torturados durante a ditadura.
O procurador diz temer que o STF mantenha sua decisão, já que para tanto terá que declarar a inconstitucionalidade do artigo 68 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica).
Nesse sentido, chama atenção para o que seria um retrocesso, na medida em que subscrever o documento foi um cumprimento constitucional. “O que está em jogo é todo o sistema de Direitos Humanos do nosso Estado, que é um patrimônio muito caro para ser posto em risco por um pacto político feito em 1970, que já é espúrio em sua origem”. Ele observou que cinco meses após a decisão, o Brasil ainda não a publicou no Diário Oficial, como deveria ter feito logo após ela ter sido emitida.
Terrorismo
Questionado sobre a morte de Osama Bin Laden, Valerio afirmou que à luz do Direito Internacional, a ação não é admitida porque invadir um Estado para capturar alguém, como foi feito, viola o princípio da abdução, segundo o qual para que um cidadão seja enviado a outro país precisa responder a um processo de extradição.
Questionado sobre a morte de Osama Bin Laden, Valerio afirmou que à luz do Direito Internacional, a ação não é admitida porque invadir um Estado para capturar alguém, como foi feito, viola o princípio da abdução, segundo o qual para que um cidadão seja enviado a outro país precisa responder a um processo de extradição.
Contudo, ele reconhece que os EUA não serão punidos pelo ato porque são membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, o que significa, na prática, que são imunes à jurisdição internacional. Para serem punidos, os EUA têm que votar nesse sentido. Segundo ele, a Carta da ONU é o único documento que prevê esse sistema.
Luiz Flávio Gomes completou a fala do também organizador, reconhecendo que “não existe direito sem força, e, como, por enquanto, os EUA detêm a força, é superior ao Direito”.
Boa notícia
O também coautor Tarciso Dal Maso Jardim, consultor legislativo do Senado Federal na área de relações exteriores e defesa nacional, informou que na quarta-feira (11/5) foi entregue à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 245/2011 para tipificar o crime de desaparecimento forçado. Para demonstrar a importância da tipificação, ele cita a Lei da Tortura (9.455/1997) que facilitou a instrumentalização da punição desse crime contra a humanidade.
O também coautor Tarciso Dal Maso Jardim, consultor legislativo do Senado Federal na área de relações exteriores e defesa nacional, informou que na quarta-feira (11/5) foi entregue à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 245/2011 para tipificar o crime de desaparecimento forçado. Para demonstrar a importância da tipificação, ele cita a Lei da Tortura (9.455/1997) que facilitou a instrumentalização da punição desse crime contra a humanidade.
História real
Laura Petit é irmã de Maria Lúcia, Jaime e Lúcio. Sua irmã foi a única identificada, em 1996, dos 70 desaparecidos no Araguaia. Ela foi morta em uma emboscada e no processo do caso é considerada sumariamente executada. Seus irmãos ainda estão desaparecidos.
Laura Petit é irmã de Maria Lúcia, Jaime e Lúcio. Sua irmã foi a única identificada, em 1996, dos 70 desaparecidos no Araguaia. Ela foi morta em uma emboscada e no processo do caso é considerada sumariamente executada. Seus irmãos ainda estão desaparecidos.
“É uma luta que dura cerca de 40 anos. O processo que chegou à Corte foi iniciado em 1982 por cerca de 22 mães e esposas, das quais muitas já faleceram”, relata.
Segundo ela, em 1995 a Comissão da Corte começou a orientar o Brasil a tomar medidas para que o caso não fosse julgado pelo tribunal. Como o Estado sempre deu “respostas evasivas e pedia o arquivamento”, em 2009 o caso foi para a Corte.
“Pela primeira vez fomos ouvidos como cidadãos. A Corte nos deu atenção que nunca tivemos no Brasil”. É o primeiro caso de violação de Direitos Humanos pela ditadura brasileira julgado pela Corte, que deu prazo de um ano para o país cumprir a sentença. Para Petit, a sentença “é uma verdadeira conquista”.
Luiz Flávio Gomes considerou o relato um bom exemplo de que passamos do domestic affair para internacional conseil, ou seja, as violações de Direitos Humanos ocorridas no Brasil concernem aos juízes internacionais se não são amparadas por aqui.
Aviso
Beatriz Affonso, cientista política e diretora do Cejil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) Brasil, que, junto com outras ONGs representou as famílias do caso Araguaia junto à Corte, deu alguns comunicados importantes.
Beatriz Affonso, cientista política e diretora do Cejil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) Brasil, que, junto com outras ONGs representou as famílias do caso Araguaia junto à Corte, deu alguns comunicados importantes.
De acordo com ela, o Estado brasileiro já cumpriu um dos itens da sentença. Há duas semanas o Congresso Nacional aprovou a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas.
Ela defende que a Comissão da Verdade não é imprescindível para que investigações, julgamento e punições sejam feitos, por considerar que já existem provas suficientes para que o MPF comece, de ofício, a atuar no sentido de cobrar o Estado.
Apesar de lembrar que a sentença da Corte é auto-executável, Affonso informa que os familiares dos desaparecidos no Pará já estão encaminhando representações na comarca competente, de Marabá (PA), com cópia para o procurador-geral da República, “para ele não ter dúvida de que esse é tema que ele tem que resolver”.
Ela explica que com a sentença, as representações funcionam como esgotamento interno, ou seja, se negadas, vão direto para a Corte. Além disso, elas não são restritas a familiares de desaparecidos, mas podem ser feitas por familiares de mortos políticos já identificados, e até presos políticos da época, porque a decisão explicita todos os crimes cometidos no período.
A cientista alerta: “O tema não se encerra com o caso Araguaia, mas começa nele. Se o estado não cumprir [a decisão da Corte], é ilusão acreditar que isso vai ficar por isso mesmo. Terá, no mínimo, 300 novos casos”.
Serviço
Livro: Crimes da Ditadura Militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Organizadores: Luiz Flávio Gomes e Valerio de Oliveira Mazzuoli
Editora: Revista dos Tribunais
Livro: Crimes da Ditadura Militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Organizadores: Luiz Flávio Gomes e Valerio de Oliveira Mazzuoli
Editora: Revista dos Tribunais
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