O Espiritismo é Religião?
Márcio Sales Saraiva
...não são nossas convicções teórico-doutrinárias que importam para as leis divinas (ou leis naturais) e sim nossa ação no mundo, aquilo que encontramos no Evangelho como "vossas obras"...
1- histórico da discussão:
Há muito essa discussão sobre o caráter religioso ou laico da Doutrina Espírita tem animado as hostes intelectuais do espiritismo brasileiro. Podemos afirmar que desde o fim do século XIX, quando o Espiritismo chegou no Brasil pela rota baiana de Luiz Olímpio Teles de Menezes, fundando o primeiro centro espírita do Brasil (o Grupo Familiar do Espiritismo), formaram-se duas facções no novo movimento: os laicos, também chamados de "científicos", liderados por Angeli Torteroli; e os "místicos", liderados por Bezerra de Menezes, considerado por muitos o "Kardec brasileiro", ainda que a sua maior contribuição ao Espiritismo não tenha sido no campo doutrinário (onde nada acrescentou), e sim, no campo da divulgação, vulgarizando idéias espíritas com seu carisma, senso de liderança e profunda caridade para com todos, em especial, para com os deserdados da vida. Claro que o religiosismo afro-místico-católico do povo brasileiro tenderia, mais tarde, a santificá-lo e rende-lhe culto particular através de mensagens distribuídas, festas comemorativas de sua passagem, quadros com sua imagem, ornamentos de flores, e expressões como "apóstolo da caridade" e "grande missionário".
Os místicos venceram essa batalha ideológica, hegemonizando o movimento espírita religioso, não só pela carismática atuação de Bezerra de Menezes, mas, principalmente com a ajuda de uma obra mediúnica de peso que a partir de finais da década de 30 começa a ganhar corações e mentes espíritas por todo o Brasil. Trata-se, é claro, da obra do querido Chico Xavier.
Sem entrar no mérito da questão, o livro Brasil: Coração do Mundo, Pátria do Evangelho é uma defesa de Roustaing e glorificação da FEB como responsável no plano espiritual pelo desenvolvimento do "cristianismo redivivo" (i.e., espiritismo) no Brasil, tendo a frente um anjo, um puro e imaculado espírito, o "Anjo Ismael". Emmanuel, na abertura deste livro, admite que se tratavam de histórias contadas oralmente, pela "tradição", no mundo espiritual. Talvez fossem até lendas, não se sabe, não há provas espirituais, mas o livro penetrou fundo na mente dos espíritas e a seqüência das obras mediúnicas do Chico confirmavam essa "ideologia emmanuelina-febiana".
2- Kardec e o conceito de religião:
O fato é que Allan Kardec sempre temeu associar Espiritismo à religião. Kardec, sempre que se referia ao Espiritismo como religião ele colocava aspas, no sentido de que sempre complementava com outras informações pois sabia ele, que em sentido usual, o espiritismo não é uma religião. Ele dizia que
"no sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião" mas logo adiante ele se interroga: "Por que, então, declaramos que o Espiritismo não é uma religião? Porque não há uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, na opinião geral a palavra religião é inseparável de culto: desperta exclusivamente uma idéia de forma, que o Espiritismo não tem."
O raciocínio dialético de Kardec, vivendo num contexto de ataque religioso-católico e perseguição ideológica, faz com que use o "sim" e o "não", argumentando que filosoficamente poderia ser religioso mas, não era religioso no sentido prático-social. Numa outra passagem, em O que é o Espiritismo? , Allan Kardec é mais explicito:
"O Espiritismo é antes de tudo uma ciência e não se ocupa de questões dogmáticas [religiosas/mss]. Essa Ciência tem conseqüências morais, como todas as ciências filosóficas. (...) Seu verdadeiro caráter é portanto o de uma Ciência e não o de uma religião." (p. 104-105 – Terceira parte: o diálogo com o padre; grifo meu).
Mais claro que isso, é impossível. Sendo assim, no meu entendimento [e no entendimento de Kardec], o Espiritismo não é religião, em seu sentido original, mas é majoritariamente religioso no Brasil atual, onde temos um "neocatolicismo-espírita" e é com essa realidade social-cultural que eu convivo diariamente no movimento espírita, na minha Casa Espírita e na maioria dos Centros e Sociedades Espíritas de minha região.
3- o contexto de Allan Kardec:
Em pleno século XIX, associar-se à religião era ser mal visto pela classe letrada (tendência anti-clerical dos intelectuais da época); cheirava a mofo, dogmatismo, fechamento, ortodoxia, clero, ritual, sacerdócio corrupto, etc. A imagem "religião" não era a imagem que Kardec desejava para o Espiritismo, ainda que o codificador considera-se, em algumas passagens, a doutrina espírita como religião, mas num outro sentido, como um laço que une a criatura ao Criador, como campo de "adoração racional" (ver "Lei de Adoração" em O Livro dos Espíritos), como código ético-moral, sem rituais, sem dogmas indiscutíveis, sem sacerdotes, sem misticismos arcaicos.
É inegável a dimensão religiosa (ético-moral) do Espiritismo. Falo aqui de "dimensão", não me refiro à totalidade ou mesmo hegemonia. Uma coisa é falar que o carro do Sr. Manuel tem uma dimensão azul (os pára-choques, por exemplo) e outra coisa é afirmar que o carro do Sr. Manuel é azul. Nesse sentido, o Espiritismo não é religião, no sentido comum da palavra religião, mas se entendermos religião como qualquer doutrina ético-moral ou "aquilo pelo qual um homem vive", aí sim, poderemos dizer que Espiritismo é religião. Percebemos aqui o quanto é complexa uma resposta rápida e simplista à essa questão, tudo dependerá daquilo que chamamos "religião", o que entendemos por isso.
4- o ponto central de nossa evolução cósmica:
Não poderei furtar-me a uma seríssima reflexão trazida por um amigo na Internet: "Qual a diferença que isso [essa discussão sobre religião] faz na minha vida, na minha evolução espiritual, nas minhas provações, expiações e carmas?".
Responderia, ainda que hesitante, que nenhuma diferença faz, porque, de fato, não são nossas convicções teórico-doutrinárias que importam para as leis divinas (ou leis naturais) e sim nossa ação no mundo, aquilo que encontramos no Evangelho como "vossas obras"... Nos "Prolegômenos" de O Livro dos Espíritos temos essa mesma visão:
"A vaidade de certos homens, que julgam saber tudo e tudo querem explicar a seu modo, dará nascimento a opiniões dissidentes. Mas, todos os que tiverem em vista o grande princípio de Jesus se confundirão num só sentimento: o do amor do bem e se unirão por um laço fraterno, que prenderá o mundo inteiro. Estes deixarão de lado as miseráveis questões de palavras, para só se ocuparem com o que é essencial. E a doutrina será sempre a mesma, quanto ao fundo, para todos os que receberem comunicações de Espíritos superiores." (grifei).
Em João, no Novo Testamento, temos diversas reflexões que nos colocam a centralidade do amor-caridade, como nesta passagem:
"Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor é de Deus; e todo o que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. 4.8 Aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor." (correlata, João 14:7).
Também nas cartas de Paulo de Tarso temos belíssimas passagens, cf. abaixo:
"Ora, no tocante às coisas sacrificadas aos ídolos, sabemos que todos temos ciência. A ciência incha, mas o amor edifica." (1Cor. 8:1)
"E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. E ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria." (1Cor 13:2-3)
Não é casual a afirmação kardequiana de que "fora da caridade [amor] não há salvação". Claro está que o Espiritismo não é salvacionista, é evolucionista, mas o que quero afirmar é que o amor é hierarquicamente superior às convicções doutrinárias e religiosas de cada um, ou seja, pouco importa se você [nesta encarnação] é laico, místico, ubaldista, ramatiziano, evangélico, católico, budista, judeu, islâmico, umbandista ou ateu, você vale pelo que você é, pelo que faz, pelo que pensa, por aquilo que constrói, por suas obras (a cada um segundo as suas obras - Romanos 2:6). Essa é a tese central do evolucionismo kardecista.
5- conclusão:
Por fim, não quero com isso desmerecer o debate doutrinário no Kardecismo. Acho-o enriquecedor e importante para o progresso do Espiritismo, que é doutrina progressista. Desejo apenas colocar, do ponto de vista da evolução cósmica, a centralidade e universalidade do amor-caridade, no seu aspecto amplo, político, social, econômico, moral etc., sobre toda e qualquer doutrina ou convicção particular (como disse o antigo sábio, "discordo do que pensas, mas defendo o direito de o dizeres"). Será que consegui?
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