Filosofia (do grego Φιλοσοφία, literalmente «amor à sabedoria») é o estudo de problemas fundamentais relacionados à existência, ao conhecimento, à verdade, aos valores morais e estéticos, à mente e à linguagem.[1] Ao abordar esses problemas, a filosofia se distingue da mitologia e da religião por sua ênfase em argumentos racionais; por outro lado, diferencia-se das pesquisas científicas por geralmente não recorrer a procedimentos empíricos em suas investigações. Entre seus métodos, estão a argumentação lógica, a análise conceptual, as experiências de pensamento e outros métodos a priori.
A filosofia ocidental surgiu na Grécia antiga no século VI a.C. A partir de então, uma sucessão de pensadores originais - como Tales, Xenófanes, Pitágoras, Heráclito e Protágoras - empenhou-se em responder, racionalmente, questões acerca da realidade última das coisas, das origens e características do verdadeiro conhecimento, da objetividade dos valores morais, da existência e natureza de Deus (ou dos deuses). Muitas das questões levantadas por esses antigos pensadores são ainda temas importantes da filosofia contemporânea.[2]
Durante as Idades Antiga e Medieval, a filosofia compreendia praticamente todas as áreas de investigação teórica. Em seu escopo figuravam desde disciplinas altamente abstratas - em que se estudavam o "ser enquanto ser" e os princípios gerais do raciocínio - até pesquisas sobre fenômenos mais específicos - como a queda dos corpos e a classificação dos seres vivos. A partir do século XVII, vários ramos do conhecimento se desvencilharam da filosofia e se constituíram em ciências independentes com técnicas e métodos próprios (geralmente priorizando a observação e a experimentação). Apesar disso, a filosofia atual ainda pode ser vista como uma disciplina que trata de questões gerais e abstratas que sejam relevantes para a fundamentação das demais ciências particulares ou demais atividades culturais. A princípio, tais questões não poderiam ser convenientemente tratadas por métodos científicos.
Por razões de conveniência e especialização, os problemas filosóficos são agrupados em subáreas temáticas: entre elas as mais tradicionais são a metafísica, a epistemologia, a lógica, a ética, a estética e a filosofia política.
As inúmeras atividades a que nos dedicamos cotidianamente pressupõem a aceitação de diversas crenças e valores de que nem sempre estamos cientes. Acreditamos habitar um mundo constituído de diferentes objetos, de diversos tamanhos e diversas cores. Acreditamos que esse mundo organiza-se num espaço tridimensional e que o tempo segue a sua marcha inexorável numa única direção. Acreditamos que as pessoas ao redor são em tudo semelhantes a nós, veem as mesmas coisas, têm os mesmos sentimentos e sensações e as mesmas necessidades. Buscamos interagir com outras pessoas, e encontrar alguém com quem compartilhar a vida e, talvez, constituir família, pois tudo nos leva a crer que essa é uma das condições para a nossa felicidade. Periodicamente reclamamos de abusos na televisão, em propagandas e noticiários, na crença de que há certos valores que estão sendo transgredidos por puro sensacionalismo. Em todos esses casos, nossas crenças e valores determinam nossas ações e atitudes sem que eles sequer nos passem pela cabeça. Mas eles estão lá, profundamente arraigados e extremamente influentes. Enquanto estamos ocupados em trabalhar, pagar as contas ou divertir-nos, não vemos necessidade de questionar essas crenças e valores. Mas nada impede que, em determinado momento, façamos uma reflexão profunda sobre o significado desses valores e crenças fundamentais e sobre a sua consistência. É nesse estado de espírito que formularemos perguntas como: “O que é a realidade em si mesma?”, “O que há por trás daquilo que vejo, ouço e toco?”, “O que é o espaço? E o que é o tempo?”, “Se o que aconteceu há um centésimo de segundo atrás já é passado, será que o presente não é uma ficção?”, “Será que tudo o que acontece é sempre antecedido por causas?”, “O que é a felicidade? E como alcançá-la?”, “O que é o certo e o errado?”, “O que é a liberdade?”.
Essas perguntas são tipicamente filosóficas e refletem algo que poderíamos chamar de atitude filosófica perante o mundo e perante nós mesmos. É a atitude de nos voltarmos para as nossas crenças mais fundamentais e esforçar-nos por compreendê-las, avaliá-las e justificá-las. Muitas delas parecem ser tão óbvias que ninguém em sã consciência tentaria sinceramente questioná-las. Poucos colocariam em questão máximas como “Matar é errado”, “A democracia é melhor que a ditadura”, “A liberdade de expressão e de opinião é um valor indispensável”. Mas, a atitude filosófica não reconhece domínios fechados à investigação. Mesmo em relação a crenças e valores que consideramos absolutamente inegociáveis, a proposta da filosofia é a de submetê-los ao exame crítico, racional e argumentativo, de modo que a nossa adesão seja restabelecida em novo patamar. Em outras palavras, a proposta filosófica é a de que, se é para sustentarmos certas crenças e valores, que sejam sustentados de maneira crítica e refletida.
Muitos autores identificam essa atitude filosófica com uma espécie de habilidade ou capacidade de se admirar com as coisas, por mais prosaicas que sejam. Na base da filosofia, estaria a curiosidade típica das crianças ou dos que não se contentam com respostas prontas. Platão, um dos pais fundadores da filosofia ocidental, afirmava que o sentimento de assombro ou admiração está na origem do pensamento filosófico:
"A admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não tem outra origem a filosofia."
Na mesma linha, afirmava Aristóteles:
"Os homens começam e sempre começaram a filosofar movidos pela admiração."— Aristóteles, Metafísica, I 2.[4]
Embora essa capacidade de admirar-se com a realidade possa estar na origem do pensamento filosófico, isso não significa que tal admiração provoque apenas e tão somente filosofia. O sentimento religioso, por exemplo, pode igualmente surgir dessa disposição: a aparente perfeição da natureza, as sincronias dos processos naturais, a complexidade dos seres vivos podem causar profunda impressão no indivíduo e levá-lo a indagar se o responsável por tudo isso não seria uma Inteligência Superior. Uma paisagem que a todos parecesse comum e sem atrativos poderia atrair de modo singular o olho do artista e fazê-lo criar uma obra de arte que revelasse nuances que escaparam ao olhar comum. Analogamente, embora a queda de objetos seja um fenômeno corriqueiro, se nenhum cientista tivesse considerado esse fenômeno surpreendente ou digno de nota, não saberíamos nada a respeito da gravidade. Esses exemplos sugerem que, além de certa atitude em relação à nossa experiência da realidade, há um modo de interpelar a realidade e nossas crenças a seu respeito que diferenciariam essa investigação da religião, da arte e da ciência.
Ao contrário da religião, que se estabelece entre outras coisas sobre textos sagrados e sobre a tradição, a filosofia recorre apenas à razão para estabelecer certas teses e refutar outras. Como já mencionado acima a filosofia não admite dogmas. Não há, em princípio, crenças que não estejam sujeitas ao exame crítico da filosofia. Disso não decorre um conflito irreconciliável entre a filosofia e a religião. Há filósofos que argumentam em favor de teses caras às religiões, como, por exemplo, a existência de Deus e a imortalidade da alma. Mas um argumento propriamente filosófico em favor da imortalidade da alma apresentará como garantias apenas as suas próprias razões: ele apelará somente ao assentimento racional, jamais à fé ou à obediência.
Os artistas assemelham-se aos filósofos em sua tentativa de desbanalizar a nossa experiência do mundo e alcançar assim uma compreensão mais profunda de nós mesmos e das coisas que nos cercam. Mas a forma em que apresentam seus resultados é bastante diferente. Os artistas recorrem à percepção direta e à intuição; enquanto a filosofia tipicamente apresenta seus resultados de maneira argumentativa, lógica e abstrata.
Mas, se essa insistência na razão diferencia a filosofia da religião e da arte, o que a diferenciaria das ciências, uma vez que também essa privilegia uma abordagem metódica e racional dos fenômenos? A diferença é que os problemas tipicamente filosóficos não podem ser resolvidos por observação e experimentação. Não há experimentos e observações empíricas que possam decidir qual seria a noção de “direitos humanos” mais adequada do ponto de vista da razão. O mesmo vale para outras noções, tais como “liberdade”, “justiça” ou “falta moral”. Não há como resolver em laboratório questões como: “quando tem início o ser humano?”, “os animais podem ser sujeitos de direitos?”, “em que medida o Estado pode interferir na vida dos cidadãos?”, “As entidades microscópicas postuladas pelas ciências têm o mesmo grau de realidade que os objetos da nossa experiência cotidiana (pessoas, animais, mesas, cadeiras, etc.)?”. Em resumo, quando um tópico é defendido ou criticado com argumentos racionais, e essa defesa ou ataque não pode contar com observações e experimentos para a sua solução, estamos diante de um debate filosófico.
Etimologia
A palavra "filosofia" (do grego) é uma composição de duas palavras: philossophia (σοφία). A primeira é uma derivação de philia (φιλία) que significa amizade, amor fraterno e respeito entre os iguais; a segunda significa sabedoria ou simplesmente saber. Filosofia significa, portanto, amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber; e o filósofo, por sua vez, seria aquele que ama e busca a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber. (φίλος) e
A tradição atribui ao filósofo Pitágoras de Samos (que viveu no século V a.C.) a criação da palavra. Conforme essa tradição, Pitágoras teria cunhado o termo para modestamente ressaltar que a sabedoria plena e perfeita seria atributo apenas dos deuses; os homens, no entanto, poderiam venerá-la e amá-la na qualidade de filósofos.
A palavra philosophía não é simplesmente uma invenção moderna a partir de termos gregos, mas, sim, um empréstimo tomado da própria língua grega. Os termos φιλοσοφος (philosophos) e φιλοσοφειν (philosophein) já teriam sido empregados por alguns pré-socráticos (Heráclito, Pitágoras e Górgias) e pelos historiadores Heródoto e Tucídides. Em Sócrates e Platão, é acentuada a oposição entre σοφία e φιλοσοφία, em que o último termo exprime certa modéstia e certo ceticismo em relação ao conhecimento humano.
O conceito de filosofia
O conceito de "filosofia" sofreu, no transcorrer da história, várias alterações e restrições em sua abrangência. As concepções do que seja a filosofia e quais são os seus objetos de estudo também se alteram conforme a escola ou movimento filosófico. Essa variedade presente na história da filosofia e nas escolas e correntes filosóficas torna praticamente impossível elaborar uma definição universalmente válida de filosofia. Definir a filosofia é realizar uma tarefa metafilosófica. Em outras palavras, é fazer uma filosofia da filosofia. O sociólogo e filósofo alemão Georg Simmel ressaltou esse ponto ao dizer que um dos primeiros problemas da filosofia é o de investigar e estabelecer a sua própria natureza. Talvez a filosofia seja a única disciplina que se volte para si mesma dessa maneira. O objeto da física não é, certamente, a própria ciência da física, mas os fenômenos ópticos e elétricos, entre outros. A filologia ocupa-se de registros textuais antigos e da evolução das línguas, mas não se ocupa de si mesma. A filosofia, no entanto, move-se neste curioso círculo: ela determina os pressupostos de seu método de pensar e os seus propósitos através de seus próprios métodos de pensar e propósitos. Não há como apreender o conceito de filosofia fora da filosofia; pois somente a filosofia pode determinar o que é a filosofia.
Platão e Aristóteles concordam em caracterizar a filosofia como uma atividade racional estimulada pelo assombro ou admiração. Mas, para Platão, o assombro é provocado pela instabilidade e contradições dos seres que percebemos pelos sentidos. A filosofia, no quadro platônico, seria a tentativa de superar esse mundo de coisas efêmeras e mutáveis e apreender racionalmente a realidade última, composta por formas eternas e imutáveis A filosofia almejaria o conhecimento universal, não no sentido de um acúmulo enciclopédico de todos os fatos e processos que se possam investigar, mas no sentido de uma compreensão dos princípios mais fundamentais, dos quais dependeriam os objetos particulares a que se dedicam as demais ciências, artes e ofícios. Aristóteles considera que a filosofia, como ciência das causas e princípios primordiais, acabaria por identificar-se com a teologia, pois Deus seria o princípio dos princípios. que, segundo Platão, só podem ser captadas pela razão. Para Aristóteles, ao contrário, não há separação entre, de um lado, um mundo apreendido pelos sentidos e, de outro lado, um mundo exclusivamente captado pela razão. A filosofia seria uma investigação das causas e princípios fundamentais de uma única e mesma realidade. O filósofo, segundo Aristóteles, “conhece, na medida do possível, todas as coisas, embora não possua a ciência de cada uma delas por si”.
As definições de filosofia elaboradas depois de Platão e Aristóteles separaram a filosofia em duas partes: uma filosofia teórica e uma filosofia prática. Como reflexo da busca por salvação ou redenção pessoal, a filosofia prática foi gradativamente se tornando um sucedâneo da fé religiosa e acabou por ganhar precedência em relação à parte teórica da filosofia. A filosofia passa a ser concebida como uma arte de viver, que forneceria aos homens regras e prescrições sobre como agir e como se portar diante das inconstâncias do mundo. Essa concepção é muito clara em diversas correntes da filosofia helenística, como, por exemplo, no estoicismo e no neoplatonismo.
As definições de filosofia formuladas na Antiguidade persistiram na época de disseminação e consolidação do cristianismo, mas isso não impediu que as concepções cristãs exercessem influência e moldassem novas maneiras de se entender a filosofia. As definições de filosofia elaboradas durante a Idade Média foram coordenadas aos serviços que o pensamento filosófico poderia prestar à compreensão e sistematização da fé religiosa; e, desse modo, a filosofia passa a ser concebida como “serva da teologia” (ancilla theologiae).Segundo São Tomás de Aquino, por exemplo, a filosofia pode auxiliar a teologia em três frentes: (1) ela pode demonstrar verdades que a fé já toma como estabelecidas, tais como a existência de Deus e a imortalidade da alma; (2) pode esclarecer certas verdades da fé ao traçar analogias com as verdades naturais; e (3) pode ser empregada para refutar ideias que se oponham à doutrina sagrada.
Os medievais também mantiveram a acepção de filosofia como saber prático, como uma busca de normas ou recomendações para se alcançar a plenitude da vida. Santo Isidoro de Sevilha, ainda no século VII, definia a filosofia como “o conhecimento das coisas humanas e divinas combinado com uma busca pela vida moralmente boa”.
Tanto na Idade Média como em qualquer outra época da história ocidental, a compreensão do que é a filosofia reflete uma preocupação com questões essenciais para a vida humana em seus múltiplos aspectos. As concepções de filosofia do Renascimento e da Idade Moderna não são exceções. Também aí as noções do que seja a filosofia sintetizam as tentativas de oferecer respostas substantivas aos problemas mais inquietantes da época. O advento da era moderna fez ruir as próprias bases da sabedoria tradicional; e impôs aos intelecturais a tarefa de encontrar novas formas de conhecimento que pudessem restabelecer a confiança no intelecto e na razão. Para Francis BaconDescartes, a filosofia, na qualidade de metafísica, é a investigação das causas primeiras, dos princípios fundamentais. Esses princípios devem ser claros e evidentes, e devem formar uma base segura a partir da qual se possam derivar as outras formas de conhecimento. É nesse sentido, entendendo-se a filosofia como o conjunto de todos os saberes e a metafísica como a investigação das primeiras causas, que se deve ler a famosa metáfora de Descartes: “Assim, a Filosofia é uma árvore, cujas raízes são a Metafísica, o tronco a Física, e os ramos que saem do tronco são todas as outras ciências”. - um dos primeiros filósofos modernos - a filosofia não deveria se contentar com uma atitude meramente contemplativa, como queriam os antigos e medievais; ao contrário, deveria buscar o conhecimento das essências das coisas a fim de obter o controle sobre os fenômenos naturais e, portanto, submeter a natureza aos desígnios humanos. Para
Após Descartes, a filosofia assume uma postura crítica em relação a suas próprias aspirações e conteúdos. Os empiristas britânicos, influenciados pelas novas aquisições da ciência moderna, dedicaram-se a situar a investigação filosófica nos limites do que pode ser avaliado pela experiência. Segundo a orientação empirista, argumentos tradicionais da filosofia, como as demonstrações da existência de Deus, da imortalidade da alma e de essências imutáveis seriam inválidos, uma vez que as ideias com que operam não são adequadamente derivadas da experiência. De maneira análoga, Kant, ao elaborar sua doutrina da filosofia transcendental, rejeita a possibilidade de tratamento científico de muitos dos problemas da filosofia tradicional, uma vez que a adequada solução deles demandaria recursos que ultrapassam as capacidades do intelecto humano.
O empirismo britâncio e o idealismo de Kant acentuam uma característica frequentemente destacada na filosofia: a de ser um "pensar sobre o pensamento" ou um "conhecer o conhecimento". Esse concepção reflexiva da filosofia, do pensamento que se volta para si mesmo, influenciará vários autores e escolas filosóficas, tanto do século XIX como do século XX. A fenomenologia, por exemplo, considerará a filosofia como um empreendimento eminentemente reflexivo. Segundo Edmund Husserl - o fundador da fenomenologia - a filosofia é uma ciência rigorosa dos fenômenos tal como nos aparecem, ou seja, tal como é a nossa consciência deles. Para descrevê-los, o filósofo deve pôr entre parênteses todas as suas pressuposições e preconceitos (até mesmo a certeza de que os objetos existem) e restringir-se apenas aos conteúdos da consciência.
Com a virada linguística do início do século XX, muitos filósofos passam a considerar a filosofia como uma análise de conceitos. Para Wittgenstein, os problemas filosóficos tradicionais são todos resultantes de confusões linguísticas; e a tarefa do filósofo seria a de esclarecer o modo como os conceitos são empregados a fim de explicitar tais confusões. Numa abordagem mais positiva sobre a atividade filosófica, Strawson considera que a filosofia é análoga à gramática: assim como os estudiosos da gramática explicitam as regras que os falantes inconscientemente empregam, a filosofia explicitaria conceitos-chave que, na construção de nossas concepções e argumentos, adotamos sem ter plena consciência de suas implicações e relações.
A lista de concepções da filosofia propostas ao longo de sua história pode ser estendida indefinidamente. Sua variedade é tão grande que dificilmente se pode encontrar um elemento que perpasse todas as concepções em todas as épocas. Mas não se pode esquecer que as antigas concepções de filosofia tornaram-se algo obsoletas frente ao avanço de outras disciplinas que antes se abrigavam à sombra, excessivamente vasta, da filosofia. As concepções de autores antigos e medievais, e mesmo de alguns modernos, consideravam indiscriminadamente como filosóficas investigações que hoje denominamos simplesmente de científicas. Assuntos como as leis do movimento, a estrutura da matéria e o funcionamento dos processos psicológicos – que hoje consideramos como temas da física, da química e da psicologia, respectivamente – eram todos reunidos na noção de filosofia natural. Após a revolução científica do século XVII, as investigações da filosofia natural foram gradualmente se desvencilhando da filosofia e se constituíram em domínios específicos e independentes de pesquisa. De certa forma, os problemas clássicos da filosofia formam hoje um conjunto de assuntos elusivos que não se dobraram à metodologia indutiva e experimental das ciências. Mas isso não implica dizer que a filosofia atual seja mero resíduo do processo de crescimento e consolidação da ciência moderna. Dizer isso seria esquecer o aspecto profundamente dinâmico e reflexivo da filosofia. A reflexão filosófica não é algo que ocorra num limbo intelectual: ela acompanha de perto a evolução das ciências, da política, da religião e das artes. Essa evolução tende a apresentar novos problemas e desafios que, por escaparem ao estrito domínio da disciplina em que surgiram, podem ser chamados de "filosóficos".
Talvez não haja uma resposta categórica à pergunta “O que é filosofia?”. Os filósofos divergem entre si sobre o que fazem, os problemas filosóficos ramificam-se indefinidamente e os métodos variam conforme a concepção do que seja o trabalho filosófico. Talvez a afirmação de Simmel de que só é possível entender a filosofia no âmbito da filosofia possa ser tomada como uma advertência quando contrastada com o amplo espectro de conceitos sobre a sua natureza: ao adotar uma das diferentes orientações filosóficas, tratamos de determinados problemas e adotamos determinados métodos para tentar esclarecê-los; mas, dado que há outras concepções, conforme outros métodos e conforme outras finalidades, devemos modestamente reconhecer que essas concepções alternativas têm o mesmo direito de ostentar o título de “filosofia” que a nossa concepção.
Os métodos da filosofia
Os trabalhos filosóficos são realizados mediante técnicas e procedimentos que integram os cânones do pensamento racional. Tradicionalmente, a filosofia destaca e privilegia a argumentação lógica, em linguagem natural ou em linguagem simbólica, como a ferramenta por excelência da apresentação e discussão de teorias filosóficas. A argumentação lógica está associada a dois elementos importantes: a articulação rigorosa dos conceitos e a correta concatenação das premissas e conclusões, de modo que essas últimas sejam derivações incontestáveis das primeiras. Toda a ideia filosófica relevante é inevitavelmente submetida a escrutínio crítico; e a presença de falhas na argumentação é frequentemente o primeiro alvo das críticas. Desse modo, o destino de uma tese qualquer que não esteja amparada por argumentos sólidos e convincentes será, frequentemente, a severa rejeição por parte da comunidade filosófica. Embora a reflexão sobre os princípios e métodos da lógica só tenha sido realizada pela primeira vez por Aristóteles, a ênfase na argumentação lógica e na crítica à solidez dos argumentos é uma característica que acompanha a filosofia desde os seus primórdios. A própria ruptura entre o pensamento mítico-religioso e o pensamento racional é assinalada pela adoção de uma postura argumentativa e crítica em relação às explicações tradicionais. Quando Anaximandro rejeitou as explicações de seu mestre – Tales de Mileto – e propôs concepções alternativas sobre a natureza e estrutura do cosmos, o pensamento humano dava seus primeiro passos em direção ao debate franco, público e aberto de ideias, orientado apenas por critérios racionais de correção, como forma destacada de se aperfeiçoar o conhecimento; e abandonava, assim, as narrativas tradicionais sobre a origem e composição do universo, apoiadas na autoridade inquestionável da tradição ou em ensinamentos esotéricos.
Mas não se podem restringir os métodos da filosofia apenas à ênfase geral na argumentação lógica e na crítica sistemática às teorias apresentadas. Nas grandes tradições da história da filosofia, podem ser identificadas duas orientações bem abrangentes, cujos objetivos e técnicas tendem a diferir radicalmente: existem as escolas que privilegiam uma abordagem analítica dos problemas filosóficos e aquelas que optam por uma abordagem predominantemente sintética ou sinóptica.
A orientação analítica é exemplificada nos trabalhos filosóficos que se dedicam à decomposição de um conceito em suas partes constituintes e ao exame criterioso das relações lógicas e conceptuais explicitadas pela análise. O exemplo clássico é a análise do conceito de conhecimento. A reflexão sobre a natureza do conhecimento levou os filósofos a decompor a noção de conhecimento em três noções associadas: crença, verdade e justificação. Para que algo seja conhecimento é imprescindível que seja antes uma crença – em outras palavras, o conhecimento é uma espécie diferenciada do gênero mais abrangente da crença. A pergunta óbvia que essa primeira constatação sugere é: o que diferencia, então, o conhecimento das demais formas de crença? Nesse ponto, o exame do conceito conduz a duas noções distintas. Em primeiro lugar, à noção de verdade. Intuitivamente separamos as crenças falsas das verdadeiras. É por isso que mantemos a crença de que Papel Noel existe num patamar diferente da crença de que a Lua gira em torno da Terra – quem sustenta a primeira, tem apenas uma crença; quem sustenta a última, provavelmente sabe algo sobre o sistema solar, pois exprime uma crença verdadeira. Mas, para que seja promovida à condição de conhecimento, a crença precisa de algo mais: ela precisa ser apoiada por alguma espécie de justificação. Além de sustentar uma crença verdadeira, o sujeito deve ser capaz de apresentar os meios ou as fontes, consideradas universalmente legítimas, que lhe propiciaram chegar à crença em questão. Feito esse exame, a conclusão é a célebre fórmula: o conhecimento é crença verdadeira justificada. Nesse e em muitos outros casos envolvendo noções filosoficamente relevantes, o trabalho de análise é capaz de explicitar pressupostos importantes implicitamente presentes no uso dos conceitos.
A outra orientação – a sintética – percorre o caminho oposto ao da análise. Os adeptos dessa orientação buscam elaborar uma síntese de várias noções relevantes e apresentá-las como um todo harmônico. Às vezes chamada de “filosofia especulativa”, essa orientação filosófica pretende revelar princípios universais que possam reunir organicamente vário elementos díspares, que aparentemente não guardam relações relevantes entre si. Um caso paradigmático dessa orientação é a filosofia hegeliana, cujo fito é integrar numa dinâmica panteísta a evolução das mais diversas formas de manifestação da cultura humana – artes, leis, governos, religiões, ciências e filosofias.
Desde o surgimento da ciência moderna, vários filósofos buscaram separar a investigação filosófica da investigação científica por meio de uma caracterização dos métodos peculiares à filosofia. Como as ciências especiais privilegiam a investigação empírica, especialmente por adoção de métodos experimentais, defendeu-se que a adoção de métodos a priori (isto é, de métodos que antecedem a investigação empírica ou são dela independentes) seria o traço definidor do trabalho filosófico. Nos casos da argumentação lógica, da análise conceptual e da síntese compreensiva não há necessidade de observação dos fenômenos para que se decida se uma conclusão é ou não é logicamente correta, se um conceito está sendo ou não corretamente empregado ou se uma visão sinóptica é ou não é incoerente. Isso não implica um divórcio entre a ciência e a filosofia. Ao contrário, implica que os filósofos estão aptos a analisar os conceitos e argumentos das ciências especiais, e, nesse domínio, podem prestar um serviço relevante ao aperfeiçoamento das teorias científicas.
Além das orientações metodológicas acima explicadas, há outras duas estratégias que podem ser caracterizados como métodos a priori. Os experimentos mentais e os argumentos transcendentais. Um experimento mental (às vezes também chamado de "experiência de pensamento") é a elaboração de uma situação puramente hipotética – geralmente impossível de ser construída na prática – por meio da qual o filósofo testa os limites de determinados pressupostos ou conceitos. O experimento mental mais famoso da história da filosofia é a hipótese do Gênio Maligno concebida por Descartes: ao imaginar um deus onipotente que se dedica a ludibriá-lo, Descartes leva o ceticismo ao seu extremo a fim de identificar uma certeza inabalável capaz de superar até mesmo a hipótese do Gênio Maligno. (Essa hipótese recebeu uma roupagem moderna na elaboração de outro experimento mental – o cérebro numa cuba).
O outro método – o dos argumentos transcendentais – foi concebido por Kant, e consiste em tomar como dados os fatos da experiência, e deduzir coisas que não são passíveis de ser experienciadas, mas que constituem a própria condição de possibilidade daqueles fatos. Com essa espécie de argumento, Kant concluiu, por exemplo, que a forma pura do espaço é uma das condições necessárias pressupostas pela experiência dos objetos externos, pois sem ela tal experiência seria impossível.
Embora o emprego da lógica formal, da análise conceptual e dos experimentos mentais sejam constantes na filosofia contemporânea, predomina hoje, sobretudo na tradição analítica, a orientação que se convencionou chamar de naturalismo filosófico. Essa orientação tem suas origens nos trabalhos do filósofo americano Willard Van Orman Quine (1908-2000) que criticam a distinção entre questões conceptuais e empíricas. Os adeptos do naturalismo rejeitam a suposição de que a filosofia se diferencie das ciências por um conjunto de métodos próprios: os problemas filosóficos e os científicos pertencem a uma única e mesma esfera e, portanto, os métodos científicos, historicamente bem-sucedidos, devem também ser aplicados à problemática filosófica.
Disciplinas filosóficas
A filosofia é geralmente dividida em áreas de investigação específica. Em cada área, a pesquisa filosófica dedica-se à elucidação de problemas próprios, embora sejam muito comuns as interconexões. As áreas tradicionais da filosofia são as seguintes:
- Metafísica: ocupa-se da elaboração de teorias sobre a realidade e sobre natureza fundamental de todas as coisas. O objetivo da metafísica é fornecer uma visão abrangente do mundo – uma visão sinóptica que reúna em si os diversos aspectos da realidade. Uma das subáreas da metafísica é a ontologia (literalmente, a ciência do "ser"), cujo tema principal é a elaboração de escalas de realidade. Nesse sentido, a ontologia buscaria identificar as entidades básicas ou elementares da realidade e mostrar como essas se relacionam com os demais objetos ou indivíduos - de existência dependente ou derivada.
- Epistemologia ou teoria do conhecimento: é a área da filosofia que estuda a natureza do conhecimento, sua origem e seus limites. Dessa forma, entre as questões típicas da epistemologia estão: “O que diferencia o conhecimento de outras formas de crença?”, “O que podemos conhecer?”, “Como chegamos a ter conhecimento de algo?”.
- Lógica: é a área que trata das estruturas formais do raciocínio perfeito – ou seja, daqueles raciocínios cuja conclusão preserva a verdade das premissas. Na lógica são estudados, portanto, os métodos e princípios que permitem distinguir os raciocínios corretos dos raciocínios incorretos.
- Ética ou filosofia moral: é a área da filosofia que trata das distinções entre o certo e o errado, entre o bem e o mal. Procura identificar os meios mais adequados para aprimorar a vida moral e para alcançar uma vida moralmente boa. Também no campo da ética dão-se as discussões a respeito dos princípios e das regras morais que norteiam a vida em sociedade, e sobre quais seriam as justificativas racionais para adotar essas regras e princípios.
- Filosofia política: é o ramo da filosofia que investiga os fundamentos da organização sociopolítica e do Estado. São tradicionais nessa área, as hipóteses sobre o contrato original que teria dado início à vida em sociedade, instituído o governo, os deveres e os direitos dos cidadãos. Muitas dessas situações hipotéticas são elaboradas no intuito de recomendar mudanças ou reformas políticas aptas a aproximar as sociedades concretas de um determinado ideal político.
- Estética ou filosofia da arte: entre as investigações dessa área, encontram-se aquelas sobre a natureza da arte e da experiência estética, sobre como a experiência estética se diferencia de outras formas de experiência, e sobre o próprio conceito de belo.
Pensamento mítico e pensamento filosófico
Como em muitas outras sociedades antigas, as narrativas míticasdeuses, intercâmbios entre deuses e homens e feitos memoráveis de semideuses. desempenhavam uma função central na sociedade grega. Além de estabelecer marcos importantes na vida social, os mitos gregos promoviam uma concepção de mundo de natureza religiosa que propiciava respostas às principais indagações existenciais que desde sempre inquietaram o espírito humano. Os eventos históricos, os fenômenos naturais e os principais eventos da vida humana (nascimento, casamento, doença e morte) eram entrelaçados às histórias tradicionais sobre conflitos entre
Originalmente, a palavra grega mythos significava simplesmente palavra ou fala; mas o termo remetia também à noção de uma palavra proferida com autoridade. As histórias épicas de Homero, permeadas de intervenções sobrenaturais, ou a teogonia de Hesíodo eram mythos no sentido de serem anúncios revestidos de autoridade, dignos de crédito e reverência. Gradualmente, o termo foi assumindo outro sentido e já à época de Platão e Aristóteles o mythos era empregado para caracterizar histórias fictícias ou absurdas que se afastariam do logos - isto é, do discurso racional. Aristóteles, por exemplo, considerava a filosofia como um empreendimento intelectual completamente distinto das elaborações mitológicas. Na Metafísica, ao tratar do problema da incorruptibilidade, Aristóteles menciona Hesíodo e, logo em seguida, descarta peremptoriamente suas opiniões, pois, segundo ele, “não precisamos perder tempo investigando seriamente as sutilezas dos criadores de mitos.”
Pode-se dizer que a filosofia surge como uma espécie de rompimento com a visão mítica do mundo. Enquanto os mitos se organizavam em narrações, imagens e seres particulares, a filosofia inaugurava o discurso argumentativo, abstrato e universal. Além disso, ao contrário dos autores de mitos, os filósofos gregos tentaram com afinco elaborar concepções de mundo que fossem isentas de contradições e imperfeições lógicas.
Desse modo, não é sem razão que muitos autores enfatizam o caráter de ruptura e divergências ao comparar o advento da filosofia com a tradição mítica da Grécia antiga. Mas, embora sejam inegáveis as diferenças, mais recentemente vários estudiosos têm apontado os pontos de continuidade e semelhança entre as primeiras elucubrações filosóficas dos gregos e as suas concepções mitológicas. Para esses autores, as peculiaridades da tradição mítica grega favoreceram o surgimento da filosofia grega e os primeiros filósofos empenharam-se numa espécie dessacralização e despersonalização das narrativas tradicionais sobre o surgimento e organização do cosmos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário