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quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Crimes da Ditadura Militar:Qual verdade se busca?








"Querem pegar 30 ou 40 pessoas agora. Mas e os grandes? Os donos da vida, os donos do poder, os que detêm as informações?"[1]



"Estou aqui como funcionário do Estado. Farei tudo o que for necessário para retirar de vocês as informações de que o Estado necessita. Vocês, pela importância que têm, terão de me dar informações. E por isso têm de ser torturados."[2]



"É notório que o uso da tortura e da violência como meio de investigação policial ainda hoje pelos aparatos policiais brasileiros decorre em grande medida dessa cultura da impunidade."[3]



A Lei da Anistia foi promulgada em agosto de 1979. Vinte e oito anos depois, portanto em agosto de 2007, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República editou o dossiê "Direito à Memória e à Verdade", em que se demonstram as mortes e os desaparecimentos de combatentes à ditadura militar. O considerável lapso de tempo indica o quanto as forças ligadas ao regime militar continuaram a vigorar no interior do Estado e a influenciar a política burguesa. Mas no seio de uma camada da classe média, a mais politizada e intelectualizada, desde sempre foram denunciados e cobrados os crimes políticos da ditadura. O mais expressivo resultado foi o documento "Tortura Nunca Mais", para o qual uma ala da Igreja foi decisiva.

O documento da Secretaria dos Direitos Humanos é produto de onze anos de trabalho da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, que foi instituída em 1995. Apurou-se com precisão documental o número de vítimas, constando para cada uma delas uma ficha que inclui a corrente a que pertencia e um resumo da circunstância da sua morte ou desaparecimento.

A Comissão vasculhou documentos, reportagens e usou depoimentos. Nem todas as circunstâncias de prisão e morte puderam ser identificadas, mas boa parte sim, e todas as vítimas têm o número do processo. Há que se ressaltar o fato de as apurações desvendarem e desmentirem as falsas alegações para as mortes apresentadas pela polícia política e apontarem os nomes dos desaparecidos. Estamos, assim, diante de um valioso retrato do terror de Estado, que ganhou projeção a partir de 1968.

Pode-se concluir que ficou pendente a identificação dos responsáveis diretos e indiretos pelas torturas, mortes e desaparecimentos. A Comissão investigou casos de tortura, morte e desaparecimento, mas não os torturadores, os assassinos e os covardes que ocultaram cadáveres. Por isso, o direito à memória e à verdade ficou no meio do caminho, em relação tanto à história quanto à responsabilização criminal. Mas o documento vale por mostrar os crimes da ditadura militar, denunciá-los e colocá-los perante o juízo da História.

Não se deve esperar que o mesmo Estado burguês ao qual a ditadura militar serviu pudesse ou possa expor integralmente seu braço armado, por mais democratizado que esteja. A prova está em que a Comissão Especial dos Direitos Humanos não teve ao seu alcance a tarefa de expor a estrutura repressiva do Estado - Forças Armadas, Polícia, Poder Judiciário - e suas mais profundas motivações históricas para praticar tamanha barbárie contra movimentos sociais, sindicalistas, militantes de esquerda, políticos burgueses, religiosos e intelectuais. Por isso, o documento expõe apenas os crimes e não os criminosos. Os porões da ditadura continuam protegidos pela densa noite.

As denúncias dos movimentos sociais, dos presos seviciados e do "Tortura Nunca Mais" abriram clareiras de luz, que arrancaram das trevas alguns rostos de carrascos. O dossiê da Comissão não conferiu plenamente o direito à verdade e à memória, porque as vítimas indefesas dos calabouços e os mortos desaparecidos tiveram seu destino atado ao do de seus algozes. Por outro lado, a tragédia individual não deve ser isolada da tragédia social. E não se deve desconhecer ou abolir as raízes da violência da sociedade de classe.

O objetivo inscrito na apresentação do "Direito à Memória e à Verdade" explicita bem a limitação política e institucional da Comissão. Eis: "O lançamento deste livro na data que marca 28 anos da publicação da Lei de Anistia, em 1979, sinaliza a busca da concórdia, o sentimento de reconciliação e os objetivos humanitários que moveram os 11 anos de trabalho da Comissão Especial".

Não podemos aceitar que se transforme o direito à memória e à verdade em um rol de casos para que as famílias tenham em paz seus mortos e recebam uma indenização. Os mortos, torturados e perseguidos pertencem às lutas, às convicções, certas ou erradas, que defenderam. Não há nada a indenizar! São mártires da luta contra o golpe reacionário de 1964. Não há nada a conciliar e não há com quem buscar a concórdia.

Os vencedores continuaram vencedores. Cumpriram seu papel na história de vencer a classe operária, os camponeses e a juventude em abril de 1964, de sufocar a resistência das lutas sociais em 1968, de destroçar na década de 1970 a reação armada de correntes que avaliaram ser possível derrotar militarmente a ditadura isoladas da classe operária e de encerrar o ciclo do nacionalismo burguês iniciado em 1930.

Esgotada a ditadura para os interesses da burguesia, os vencedores, sob pressão do movimento democratizante, cumpriram finalmente seu papel de se afastar do comando governamental do Estado. Mas, para isso, exigiram um acordo que resguardava as Forças Armadas, a Polícia, o Poder Judiciário, os políticos, os capitalistas diretamente colaboradores, os mentores externos que patrocinaram o golpe, e outros. O acordo: a Lei de Anistia.



Anistia para os derrotados?



O direito à memória e à verdade exige o reconhecimento de que a Lei da Anistia não foi concebida para os derrotados, mas para os vencedores.

A ditadura estava esgotada, não tinha como dar conta da nova situação de crise econômica aberta em meados de 1970. Mergulhara em escândalos de corrupção. Não mais podia bloquear a tendência de a classe operária voltar à luta. As camadas mais pobres da classe média já não assimilavam a propaganda do nacionalismo militar do "Ame-o, ou deixe-o". E a oposição consentida (MDB) ganhava terreno frente ao partido da ditadura (Arena).

O governo do general Figueiredo se encontrava encurralado. Não havia espaço para mais uma sucessão promovida na Junta Militar, à margem do MDB, que serviu de canal ao descontentamento popular, de forma a desviá-lo e condicioná-lo a uma transição concertada nos bastidores do Estado, sob a bandeira de "Diretas, já". Era questão de tempo para que a ditadura caísse e os direitos de uma democracia burguesa fossem estabelecidos.

A Lei da Anistia, portanto, fez parte da transição por cima, de forma a resguardar os crimes da ditadura e conservar ao máximo os segredos de Estado. No entanto, foi apresentada como uma dádiva aos exilados, aos conscritos e aos presos, que, aliás, continuaram presos por um bom tempo.

As forças da repressão não apenas atacaram as correntes de esquerda armadas, mas também importantes posições do nacionalismo, representado pelo presidente João Goulart, por governadores como Brizola, Arraes, parlamentares e religiosos da alta hierarquia. A hipótese de que João Goulart tenha sido assassinado no exílio é altamente provável. Vários representantes do grupo dos 11, brizolista, tiveram as vidas arrancadas. As mortes atingiram de simples operários, estudantes e camponeses sem vínculo com as organizações políticas a vereadores, prefeitos, oficiais das Forças Armadas, e outros. Ressalte-se ainda a matança no Araguaia em função da guerrilha rural organizada pelo PCdoB. Inúmeros presos foram torturados, executados, e seus corpos, ocultados na floresta.

A Comissão Especial apurou 339 casos de mortos e desaparecidos que não constavam da lista de 135 casos de desaparecidos do movimento pelos direitos humanos, o que perfaz 474 mortos e desaparecidos reconhecidos. Como, então, manter nas masmorras e nos arquivos do aparato militar-policial tamanho segredo? Se houve um acordo para transitar a ditadura para a democracia eleitoral, se foi possível uma Lei da Anistia que livrou a ditadura de investigação e julgamentos, por que não seria possível um acordo em que o Estado reconhece seus atos ilegais, presta contas às famílias e as indeniza? Até esse ponto é do interesse dos militares. O problema começa quando surge no âmbito do acordo uma diferença: considerar a tortura um crime não passível de anistia e pleitear a abertura dos arquivos da ditadura militar.



Haverá punição? Os arquivos serão abertos?



A publicação do "Direito à Memória e à Verdade" abriu e remexeu a gangrena que havia sido ocultada. A Comissão Especial não apurou responsabilidades. Mas trouxe à tona as questões: devem os assassinos e torturadores continuar à sombra de sua obra? Quem são os responsáveis? Trata-se de responsabilidade individual? A Lei da Anistia não serve tanto ao torturador quanto aos que pegaram em armas? A anistia não foi um acordo que igualou vencedores e vencidos, torturadores e torturados? Não seria revanche e vingança depois de quase três décadas voltar às feridas? Já não houve conciliação e concórdia? Não é suficiente que o Estado reconheça os mortos, localize, se possível, os desaparecidos e se mostre humanitário, dando às famílias o direito à memória e a uma indenização? Como abrir os arquivos se há sigilo de questão de segurança nacional?

As respostas dependem dos meandros jurídicos. Por essa via, não haverá punição alguma.

O caso mais notório é o do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra e do ex-comandante do Destacamento de Operações de Defesa Interna, o famoso DOI-Codi de São Paulo. O Ministério Público Federal, em maio de 2008, entrou como uma ação na Justiça para responsabilizar os dois agentes da repressão pela morte ou desaparecimento de 64 presos políticos. Em novembro, o juiz Clécio Brashi bloqueou a ação com a justificativa de que cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) decidir se os torturadores e assassinos de presos políticos estão cobertos ou não pela Lei da Anistia.

Em julho desse mesmo ano, Tarso Genro, Ministro da Justiça, em audiência pública, pronunciou-se a favor do processo contra "agentes públicos" que cometeram crimes de tortura e assassinato. Militares questionaram Tarso. Nelson Jobim, Ministro da Defesa, serviu de porta-voz da caserna. Do alto do STF, Celso de Mello foi claro na defesa de que a Lei da Anistia pôs uma lápide sobre todos os acontecimentos.

Em agosto, o Clube Militar convocou um ato de desagravo e acusou de estar o governo Lula rodeado de personalidades que no passado praticaram o terrorismo e todos se beneficiaram da anistia. D. Odilo Pedro Scherer, cardeal de São Paulo, comungou com o ponto de vista de que se deveria virar a página. Roberto Freire, ex-PCB, defendeu o respeito à Lei da Anistia.

A última palavra foi dada pelo presidente do STF, Gilmar Mendes: "Estamos falando de fatos que ocorreram há mais de 30 anos. É muito difícil fazer uma revisão unilateral da Lei da Anistia". Ou: "Repudio qualquer tentativa de tratar unilateralmente casos de direitos humanos. Direitos humanos valem para todos - presos, ativistas políticos. Direitos humanos não podem ser ideologizados, é bom que isso fique claro." (Folha de S.Paulo, 4/11/2008). Para Gilmar Mendes estão sobre a guarda dos direitos humanos tanto torturados quanto torturadores.

O presidente Lula recomendou que o melhor era Tarso Genro não insistir na sua proposição que dividia o governo e levava a confrontos.

O ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, se mostra empenhado, juntamente com Tarso Genro, em defender a tese de que crime de tortura é imprescritível. Gilmar Mendes responde que atos de terrorismo também não prescrevem.

Paulo Vannuchi prometeu uma campanha de esclarecimento sobre os mortos no Araguaia para março deste ano. Espera-se vasculhar a região e encontrar as ossadas. Mas está convencido de que nada poderá fazer contra torturadores e assassinos: "O que menos importa agora é se se põe ou não alguém na cadeia" (in O Estado de S. Paulo, 2/03/09). O mesmo destino tem o pleito de abrir os arquivos da ditadura: "Acredito que, se houvesse um mandado de busca de arquivos em quartéis-generais do Brasil, teria gente que se oporia a isso", afirmou Vannuchi.

A reação imediata de militares, ministros, políticos, setores da Igreja etc. contra a abertura de processos e punição demonstra que o Estado de Direito, em nome do qual se reivindica o direito à memória e à verdade, no Brasil, é uma síntese que comporta em seu seio aspectos da ditadura militar. A democratização se deu por essa síntese. Participantes do regime militar ou defensores do golpe de 1964 constituem força decisiva no Estado de Direito, cuja expressão maior é a das Forças Armadas. O máximo permitido é identificar os mortos e pagar as famílias, que na sua maioria nada tinham que ver com as convicções daqueles que tombaram em nome da liberdade, da democracia, do nacionalismo, do antiimperialismo ou até mesmo do comunismo.

A luta democrática pela responsabilização da ditadura militar, pela extinção de seus pilares, pela revelação dos criminosos, pela abertura do que resta dos arquivos e pela punição dos torturadores deve continuar. Mas terá de ser assumida pelos movimentos sociais, tendo à frente as organizações operárias e populares.



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