Nascimento e formação
Filho de Vincenzio Galilei e de Giulia Ammannati di Pescia, nasceu em Pisa no dia 15 de Fevereiro de 1564. Os seus antepassados pertenciam à alta sociedade de Pisa e, embora a família tivesse decaído economicamente, mantinha quase intacto o seu prestígio graças às boas tradições familiares que conservara, e às boas relações de amizade com os membros da alta aristocracia.
Em 1581 Galileu iniciou os seus estudos de Medicina na Universidade de Pisa, possivelmente a conselho de seu pai, desejoso que o seu filho renovasse o prestígio de um dos seus antepassados, chamado também Galileu Galilei, e que tinha sido um médico de fama. A orientação escolástico-galênica do ensino médico de Pisa, não satisfaz as esperanças do jovem Galileu que abandona os estudos médicos e transfere-se para Florença onde, sob a orientação de Ostílio Ricci, discípulo por sua vez de Nicolo Tartaglia, professor de matemática na Escola de Belas Artes, começa a descobrir o sentido das suas inclinações. O mestre Ostílio Ricci é o impulsionador de um vasto campo de estudos científicos que em muitos domínios são do interesse permanente do discípulo. Além disso, Ostílio Ricci oferece a Galileu as obras de Arquimedes. É durante esta época que Galileu realiza os seus trabalhos sobre o isocronismo das oscilações pendulares.
Galileu tinha um temperamento alegre, otimista, sociável, com todas as paixões do diletante e do sibarita; com o mesmo empenho, participava num argumento literário, num difícil caso legal, numa cena elegante ou na descoberta de um novo efeito natural. Era direto e audaz na apresentação dos problemas intelectuais; no trabalho e no lazer, mostrou-se sempre como homem apaixonado, que ía até aos limites das suas possibilidades. Era dotado de uma grande imaginação, viva e desperta; tinha um espírito de rebeldia, de inconformismo, de contradição, que lhe granjeou a animosidade e até o ódio dos seus professores na Universidade de Pisa.
Sentia-se atraído por tudo: os movimentos da lâmpada do templo; o canto dos insetos; os versos elegantes. Vivia nele um espírito aberto, filho das tradições intelectuais da Grécia e de Roma. Galileu era um cientista-filósofo - assim gostava de se chamar -, um pensador, um escritor. Era tal o seu talento que estas características intelectuais da sua mente não conseguem completar a descrição da sua personalidade profundamente humana.
Galileu era generoso. Quando, em 1591, sua irmã Virgínia contrai matrimônio, Galileu dá-lhe muitos presentes e chega até a comprometer-se, mediante contrato, a dar-lhe um dote. E isto, quando o seu cargo de professor em Pisa não lhe permitia sequer manter-se, vendo-se obrigado a dar aulas particulares. Recebia 180 florins anuais, por ensinar Geometria, Astronomia, Engenharia Militar, enquanto que um professor de Filosofia ganhava 200 florins. Mais tarde, voltou a fazer o mesmo contrato com a sua irmã Lídia, aumentando assim consideravelmente as suas dívidas.
Nas suas obras, Galileu é sempre um escritor; um escritor sem par em toda a literatura científica. É um gramático de engenho agudo e de bom gosto. Adora a simplicidade, a clareza, a propriedade e a ordem. No campo científico, estas idéias deveriam aproximá-lo do estilo de Euclides. Contudo, o estilo de Galileu é a antítese do euclidiano. Abandona todo o tipo de geometrismo; e fá-lo conscientemente, não por instinto. Fala das coisas necessárias e das que o não são para o seu trabalho científico. Galileu não seria escritor, se não sentisse a irresistível necessidade de se exprimir, de ceder perante o gênio da sua inspiração. É uma necessidade puramente estética. Os seus escritos são o diário espiritual de um homem que contempla tudo com uma admiração infinita e quer comunicar o seu entusiasmo, o seu veemente entusiasmo.
Sempre teve, em justa correspondência, o apoio dos artistas, dos poetas e escritores, ao mesmo tempo que lhe faltou o dos professores, cujas idéias arcaicas não conseguiu mudar. Os escritores celebraram o telescópio nas suas obras; os pintores representaram-no na cúpula de Santa Maria Maior de Roma; de Inglaterra, chegaram-lhe notícias de que o telescópio teria invadido a Filosofia. O clima intelectual daquela época foi, em grande parte, a causa das lutas que Galileu teve que travar. Correspondia a um ambiente de esterilidade nas Universidades e a uma grande resistência, por parte dos homens cultos, na aceitação de novas idéias. Galileu, de talento muito superior ao dos seus contemporâneos, fez descobertas astronômicas de grande importância (...). A reação dos seus colegas irritou-o profundamente. Alguns doutores negaram-se terminantemente a fazer observações pelo seu telescópio; outros fizeram-nas, mas disseram que não tinham visto nada.
Actividade científica
Pelos seus progressos científicos, é nomeado em 1592 professor da cátedra de Matemática da Universidade de Pádua, considerada então como a melhor da Europa. Durante 18 anos rege esta cátedra, até 1610, altura em que publica em latim uma obra que abala as convicções científicas e culturais do seu tempo: o Sidereus Nuntius (o mensageiro celeste). O livro contém revelações que são espetaculares para a sua época. Trata-se de uma descrição do céu tal como se observa através da luneta que ele próprio construiu: a Lua, aumentada muitas vezes, mostra o segredo das suas montanhas; milhares de novas estrelas, que antes não se viam, aparecem agora no céu; a Via Láctea deixa de ser uma nuvem cósmica e aparece como uma imensurável aglomeração de astros...
A vida de Galileu, a partir deste momento em que a celebridade é afirmada pela novidade suas idéias científicas e pelo alcance extraordinário das mesmas, decorre entre actividades muito diferentes. Para uma exposição adequada do significado geral da sua vida e da sua obra nos anos que se seguem à publicação do Sidereus Nuntius, é imprescindível assinalar os rasgos mais vincados da sua personalidade. Os grandes criadores das orientações científicas do Renascimento estão presentes de modos diversos no contexto histórico-cultural em que viveram. Esta multiplicidade de ambições e de propósitos pode, no fundo, reduzir-se a três formas diferentes de atitude pessoal, exemplificadas por Kepler, por Bruno e pelo próprio Galileu. Iohannes Kepler é a personificação de uma atitude perfeitamente definida: as conclusões e as descobertas da Nova Ciência hão de ser tema de diálogo e de discussão entre as pessoas devidamente informadas. Kepler classifica como inoportuno o comportamento dos homens de ciência da sua época que exibem e proclamam perante o grande público os resultados e as novidades que são fruto das investigações da Nova Ciência. A sua aportação ao moderno espírito científico é, contudo, tão abundante e interessante como a de Galileu. Este modo de entender a inserção do homem da ciência no seu mundo, é possível que tenha sido herdado por Kepler do seu antecessor na Astronomia que foi Nicolau Copérnico; tal como Kepler, este também fora refratário à proclamação das teses renovadoras das suas concepções astronômicas fora do domínio dos interesses estritamente científicos.
A posição oposta à de Copérnico e de Kepler é a encarnada por Giordano Bruno. A sua concepção do mundo que aponta ao Renascimento traduz-se, mais que em proclamar o dramatismo da novidade em exaltar a promessa da grandeza futura da Nova Ciência, uma vez consumada a ruptura com toda a tradição da física aristotélico-medieval, ruptura que o visionismo italiano crê estar contida na obra de Copérnico. Convém advertir que Giordano Bruno não aporta nenhum resultado concreto para esta nova concepção da natureza; a sua ignorância sobre os métodos concretos da nova orientação científica é total.
Galileu, por seu lado, ocupa uma posição intermédia; por um lado participa da fecundidade científica de Kepler no estabelecimento de novos métodos. A esta dimensão da sua atividade científica pertencem as suas obras mais valiosas. Por outro lado, e simultaneamente com este aspecto da sua produção científica, leva a cabo uma acção de propaganda cultural (cfr L. Geymonat, Galileu Galilei, Madrid 1969). De facto, o Diálogo" não é nem um livro de Astronomia nem um livro de Física. É sobretudo um livro de crítica, uma obra polémica e de combate..." (A. Koyrée, Études Galiléenes, Paris 1939). À medida que os anos passavam, tanto mais se convencia Galileu de que naquela altura era necessário, para além do que quer que fosse, difundir, em círculos cada vez mais amplos, a fé no copérnicanismo (L. Geymonat, o.c. 68). O melhor de Galileu como cientista é o que tem de comum com Kepler: o rigor na aplicação de novos métodos para fazer progredir a Ciência. O pior de Galileu como cientista, e o que mais popularidade lhe grangeou, é o que tem de comum com Giordano Bruno: uma espécie de furiosa acção de propaganda popular, de crítica, de polémica, de combate .. (Carlos Escartin, Galileu Galilei, in Palabra, Madrid.)
O seu caráter não lhe permitia trabalhar isolado; era um apaixonado e não era propriamente um apático. Dedicou a Antonio Rocco, o insuportável autor de Exercícios paripatéticos, os mais carinhosos epítetos: Animale, gran bue, balordone, capo durissimo inetto a intender nulla. (1)
Na mente de um homem destes, há muitas correntes de pensamento; as diferentes tendências entrelaçam-se para dar a cada problema uma solução por vezes subjectiva, na qual se podem encontrar - misturadas, sim, mas unidas pela personalidade do ser que as concebe - ideias estéticas, filosóficas e científicas. Este comércio entre os diferentes aspectos do saber humano costuma ser fecundo; ultrapassar um conceito de ordem e de beleza obtida na leitura de uma obra literária pode dar magníficos resultados no campo científico. Mas esta transfusão, se em muitos casos é útil e fecunda, pode também acarretar-nos perigos evidentes e levar-nos a conclusões falsas ou pelo menos a estabelecer essas conclusões sem o rigor necessário, para que o seu fundamento seja perfeitamente sólido. Kepler afirmou, depois de longos estudos, em que empregou vinte e cinco anos da sua vida, que os planetas giram segundo trajectórias elípticas, ficando o Sol no foco destas. Galileu que mantinha uma correspondência contínua com Kepler, rejeitou a lei e defendeu arbitrariamente que os planetas giravam segundo órbitas circulares, em cujo centro se encontrava o Sol. O que é que levou Galileu a manter este erro?
Galileu viveu cem anos depois de Rafael. Uma das expressões artísticas do tempo de Galileu foi uma forma de pintar chamada maneirismo. Um artista, Acimboldo, introduziu uma técnica de imagens duplas, que produzia uns efeitos surpreendentes. Entre as suas obras de pintura, há uma que representa uma cara formada por frutas, f1ores, hortaliças... Galileu detestava este tipo de pintura e também toda a poesia baseada no maneirismo. O seu gosto era clássico, purista; preferia a música instrumental pura, sem canto. Para defesa dos seus gostos e dos seus amigos, participou calorosamente em diversas controvérsias. O seu critério foi sempre pessoal, até no modo de escrever; não seguiu o estilo da época. Em consequência do seu amor pela simplicidade clássica, Galileu manteve a sua fé, comum a Aristóteles e Platão, na perfeição do círculo. O círculo era perfeito, não só do ponto de vista matemático e estético, mas também como trajectória mecânica dos planetas na sua órbita. A elipse, considerando-a como um círculo deformado, era menos perfeita. Galileu, possivelmente, terá visto nela um símbolo do artificialismo do maneirismo. Assim, escreveu: "o movimento circular é, naturalmente (isto é, sem perturbação extema), o mais apropriado para os corpos do nosso universo e constitui a melhor ordem".
Galileu sentiu a "vertigem da circularidade", segundo a frase feliz de Koyré.
A sua preferência pelo sistema heliocêntrico, em oposição ao geocêntrico, foi-se sedimentando lentamente na sua mente, não sob a influência de atos típicos, mas sobretudo impulsionado pelas suas idéias estéticas, de ordem. A hipótese de Copérnico representava um sistema planetar mais belo, de compreensão mais fácil, mais elegante: todos os planetas giravam a volta do sol, descrevendo círculos, segundo Galileu. O Sol, sendo o maior e o único que produzia a sua própria luz, deveria ocupar o centro. O seu coração estava decidido a favor de Copérnico. Portanto, qualquer fato científico vinha corroborar aquilo que o coração desejava; e isto era certamente assim, pois, como vimos ambos os sistemas podem ser defendidos pela Ciência, com idêntica verdade. A invenção do telescópio, no qual Galileu viu o instrumento decisivo para demonstrar a tese de Copérnico, e as descobertas que fez com ele foram o sinal adequado para que a sua razão cedesse à pressão do seu coração. Lançado neste caminho, não lhe restava senão aperfeiçoá-lo, até chegar ao fim. Com o seu caráter generoso e audaz, removeria qualquer obstáculo que se lhe apresentasse.
Uma vez que não podia convencer as Universidades, decidiu sacrificar o valor internacional do Latim e dirigir-se à generalidade do público em 1íngua vemácula. Estava disposto a conseguir a aceitação das suas idéias. Desceu até às multidões, apesar de pensar tal como Voltaire, que eram destituídas de juízo crítico; queria atrair para o seu partido os chefes naturais. Renunciou ao seu lugar seguro de professor na Universidade de Veneza, para se lançar na incerteza das marés dos mecenas de Florença, a fim de que o claustro de professores jamais pudesse obrigá-lo a não ensinar as suas teorias; atuou politicamente e arrastou consigo aqueles que pôde; fez freqüentes viagens a Roma, para ganhar a adesão dos astrônomos da Cidade Santa às suas descobertas e idéias.
O Processo
Esta orientação dada à sua atividade científica, que conduzia de modo veemente a obter ressonância e difusão do novo espírito científico e do resultado dos seus métodos, entrou em conflito, como é natural, com a cultura tradicional anteriormente estabelecida, com umas crenças arcaicas e também em parte com a própria Igreja Católica. Este conflito terminou com o célebre processo.
O processo de Galileu teve duas etapas: a primeira em 1616 e a segunda e definitiva em 1633. No dia 19 de Fevereiro de 1616, o Santo Ofício consultou um conjunto de teólogos a fim de resolver se as teses que estabeleciam a imobilidade do Sol e o movimento de rotação e translacão da Terra eram compatíveis com o que diz a Sagrada Escritura. Depois de quatro dias de reflexão, os teólogos foram unânimes em considerar as teses de astronomia como filosoficamente absurdas e formalmente heréticas. O Papa Paulo V encarregou o Cardeal Belarmino (S. Roberto Belarmino) de comunicar a Galileu esta conclusão dos teólogos, e de simultaneamente lhe pedir que abandonasse essas opiniões que tinham sido rejeitadas. A opiniao do Cardeal Belarmino em relação a esta questão, muito mais ponderada que a dos teólogos anteriores, ficou consignada na carta que enviou ao carmelita P. Foscarini e donde extraímos os seguintes parágrafos: "...o senhor Galileu atua prudentemente ao limitar-se a falar ex suppositione e não de modo absoluto, como foi sempre o modo de expôr de Copérnico. Pelo fato de se dizer que se supõe que é a Terra que se mexe e que o Sol está fixo, salvam-se melhor as aparências do que supondo círculos excêntricos e epiciclos, e está muito bem dito. Digo que, se fosse verdadeira a demonstração de que o Sol está no centro do mundo e a Terra no terceiro céu, e que o Sol não gira à volta da Terra, mas que a Terra gira à volta do Sol, então seria necessário ter muito mais cuidado ao explicar as Escrituras, que parecem ser contrárias, e melhor ainda dizer que não as entendemos em vez de dizer que é falso aquilo que se demonstra. Mas não acreditarei que existe essa demonstração enquanto não for demonstrada; não é a mesma coisa dizer que supondo que o Sol se encontra no centro e a Terra no céu se salvam as aparências, e demonstrar que na verdade o Sol está no centro e a Terra no céu. A primeira demonstração penso que se poderá fazer, mas quanto à segunda tenho muitas dúvidas...
Estas observações do Cardeal Belarmino são decisivas para alcançar uma compreensão essencial deste emaranhado processo. Uma coisa é, certamente, a conveniência científica de uma hipótese, outra a verdade de um fato. Galileu pensava que estar o Sol fixo era, além de uma hipótese útil, uma verdade absoluta. Mas esta verdade aparecia como contrária à interpretação tradicional das Escrituras. Perante este estado da questão, Galileu tinha uma possibilidade de recurso: demonstrar que o Sol está fixo ou que a Terra se move, à margem de qualquer consideração de maior ou menor conveniência. Porém, no momento e no ambiente em que Galileu escreve e polemiza, ainda está mal delineado o fundamento científico sobre o qual se apóia esta demonstração: Bradley não provou a aberração da luz senão em 1727; Bessel só em 1838 mostrou a paralaxe da estrela 61 da constelação do Cisne. A experiência que parecia mais próxima do alcance das idéias de Galileu, que é o deslocamento do plano de oscilação do pêndulo, só foi realizada por Foucault em 1851. No seu momento histórico Galileu defendeu com ardor uma tese que nessa altura estava mais apoiada nas convicções de uma mente de gênio do que numa serena demonstração física.
A toda esta situação, já de si bastante conflitiva, deve-se acrescentar a confusão que o próprio Galileu introduzia ao expôr demonstrações errôneas: o ilustre italiano pensou que poderia demonstrar o movimento de rotação e de translação da Terra considerando-os como causa do fluxo e refluxo das marés. Estas demonstrações são verdadeiramente inconciliáveis com a habitual agudeza de espírito e perspicácia científica de Galileu. Assim, a discordância entre a força das suas afirmações e a pouca consistência dos seus argumentos demonstrativos, vinham mesmo a propósito para confundir as mentes de uns teólogos carentes da formação científica necessária para apreciar por si próprios o respeito que merecia a tese defendida por Galileu, tanto pela sua verosimilhança intrínseca como pelo extraordinário gênio do seu defensor. Por outro lado, faltou-lhes ter em conta o princípio - repetido inúmeras vezes pela patrística e pela escolástica, e concretamente por Santo Agostinho e S. Tomás - segundo o qual a Sagrada Escritura ao narrar fatos físicos atém-se a uma linguagem segundo as aparências sem pretender esclarecer a natureza íntima das mesmos; e isto teria resolvido a questão do ponto de vista da religião. (2)
Infelizmente faltou agudeza de espírito de parte a parte, assim como prudência por parte de Galileu, o qual, em vez de se limitar a apresentar as suas opiniões como hipóteses, continuou a propagá-las como uma verdade absoluta que não podia contudo provar. Tudo culmina no segundo processo, solene e definitivo, que teve lugar em Roma em 1633. Neste processo, o Santo Ofício seguiu o critério de que, na ausência de demonstrações conclusivas, não se deve difundir e propagar o que vai contra uma tradição estabelecida e condenou Galileu por esta atitude. Galileu foi condenado pelo Santo Ofício a viver em Arcetri. Para o acompanhar e assistir aos achaques próprios da sua idade avançada, foi-lhe facilitada a companhia na sua quinta de Arcetri de um estudante inteligente - Vincenzo Viviani - que permaneceu ao lado do seu mestre até à morte, ocorrida na noite de 8 de Janeiro de 1642. Durante este período, Galileu manteve uma intensa atividade científica. Para Galileu, a Ciência adquiria o seu verdadeiro valor na síntese católica do saber. As diversas formas de conhecer são aproximações do conhecimento intuitivo de Deus, que tudo abarca. Entre o pensamento humano e o pensamento divino não pode haver contradição e, por conseguinte, afirma Galileu e não pode haver contradição entre a Bíblia e a Ciência. Como se entende então o milagre de Josué? Galileu responde que a Bíblia não deve ser interpretada literalmente em questões científicas; a Bíblia procura a salvação das almas; ensina come si vadia al cielo e non come vadia il cielo.(3)
Se Galileu, como bom católico que sempre foi, pensava assim, porque é que manteve tão veementemente o sistema heliocêntrico?
Ouçamos as palavras de Galileu, pronunciadas numa das sessões do seu julgamento: "Dois argumentos - um, baseado nas manchas solares e outro no movimento de fluxo e refluxo das marés - que verdadeiramente chegam aos ouvidos do leitor (refere-se ao leitor do seu Diálogo), têm uma maior aparência de força e poder que aquela que lhes devia ter sido dada por aqueles que consideram esses argumentos inconclusivos e pretendem refutá-los; e, quando é o caso, eu sinceramente mantenho que são inconclusivos e que podem ser refutados. E, para me desculpar de ter caído em erro tão alheio à minha intenção, não ficando eu completamente satisfeito ao dizer que quando a parte contrária apresenta argumentos, com o fim de os refutar, eu deveria - especialmente se se escreve em forma de diálogo - pô-los na sua forma mais estrita, e não mascará-los para dificuldade do opositor; digo, além disso, que cedi perante a complacência natural que todo o homem sente em relação às suas subtilezas pessoais, mostrando-se mais habilidoso que a maioria dos homens ao apresentar, inclusive em favor de proposições falsas, argumentos engenhosos e com aparência de verdade. Por tudo isto, mesmo que possa dizer com Cícero avidior sim gloriae quam sat est" (4), se tivesse que apresentar agora os mesmos argumentos, sem dúvida que os tornaria mais débeis para que se tornasse mais aparente o aspecto da solidez que real e verdadeiramente lhes falta. O meu erro - e confesso-o - um erro de ambiciosa vanglória e de inadvertência - Assim falou Galileu numa das sessões do seu julgamento.
A Obra de Galileu
Galileu é um dos mais importantes iniciadores do espírito e dos métodos que orientarão o desenvolvimento das ciências até aos nossos dias. As suas aportações mais importantes pertencem ao empreendimento metódico geral conhecido por matematização da experiência: a conceptualização dos fenômenos mecânicos através de uma adequada formulação matemática. Neste campo, a conquista que lhe deu mais prestígio foi a formulação matemática da queda dos graves, ou, como era então conhecida, o movimento natural da queda. A Terceira Jornada dos Diálogos da Nova Ciência começa com estas palavras: "sobre um tema muito velho estamos a promover uma ciência novíssima. Nas suas obras faz inúmeras aplicações dos princípios que descobriu; aplica estes princípios a problemas concretos da mecânica. Na "Quarta Jornada" e a propósito do estudo do movimento dos projéteis, reconhece que a trajetória não perturbada de um projétil é uma parábola resultante de dois movimentos diferentes que têm lugar, simultaneamente, no objeto móvel. O movimento dos corpos ao longo do plano inclinado foi cuidadosamente examinado e simulado até chegar a constituir o princípio fundamental do seu progresso na Ciência. Antes de Galileu, desde a Antiguidade, a Astronomia era aquela parte da Ciência que vinha oferecendo as melhores ocasiões para a consideração matemática do acontecer natural. O mérito principal de Galileu foi o de criar conceitos matemáticos para compreender os movimentos da nossa próxima experiência terrestre. Assim se entende o resumo que faz Bergson da obra de Galileu: a ciência matemática que se aplicara ao estudo dos astros desceu à Terra pelo plano inclinado de Galileu.
A maioria das obras de Galileu estão escritas em forma de diálogo entre dois interlocutores: Simplício, que representa a física aristotélico-escolástica; Sagredo que representa a cultura do burguês do Renascimento, aberto à aceitação de qualquer idéia nova bem exposta e raciocinada; e, por fim, Salviati que fala em nome do próprio Galileu. Entre as numerosas obras de Galileu destacam-se, pela sua importância, os Discorsi e dimostrazioni matematiche entomo à due nuove scienze, Il saggiatore, Sidereus Nuntius, Dialogo sopra i massimo sistemi. A edição oficial das suas obras completas consta de 21 volumes (Florência, 1890-1909) a cargo de Antonio Favarro.
ROBERTO SAUMELLS, G.E.R.
(1) Animal, grande boi, estúpido, cabeça duríssima, incapaz de entender o que quer que seja.
2) N. do tradutor: Convém talvez recordar o que é a Sagrada Escritura: a Bíblia é a colecção de livros escritos pelos profetas e pelos historiadores sagrados, pelos Apóstolos e pelos Evangelistas, por inspiração do Espírito Santo e recebidas pela Igreja como inspiradas. Assim, inspiração significa a assistência do Espírito Santo dada ao autor humano para que este escrevesse aquelas verdades divinas que o próprio Deus - autor principal de toda a Sagrada Escritura - quiz que fossem conhecidas pelos homens e cujo conhecimento lhes é necessário para a Salvação.
Não é possível encontrar divergências entre a Fé e a razão, entre a Sagrada Escritura e a Ciência. E isto porquê? Porque ambas procedem de Deus. Como diz Leão XIII: Tenham presente com a máxima fidelidade que o mesmo Deus, Criador e governador de todas as coisas, é o autor das Escrituras." Se se dá a contradição é só aparentemente; quando ambas - a Fé e a ciência - se ocupam dessa mesma coisa sob pontos de vista diferentes.
A Sagrada Escritura não pretende dar-nos diretamente ensinamentos em matéria científica, ainda que fale ou descreva verdades que também são objeto da Ciência. O fim da Sagrada Escritura é ensinar-nos o caminho da Salvação. As verdades fundamentais para a Salvação estão escritas numa linguagem simples e figurada, adaptada às inteligências pouco cultas dos homens de então. O escritor sagrado, por outro lado, não nos fala cientificamente, isto é, usando a linguagem precisa e rigorosa do homem de ciência; escreve de acordo com a maneira de falar do povo. Assim, fala-se de nascer e pôr do Sol, que o Sol gira à volta da Terra, etc. Também se chama ao Sol e à Lua os maiores luzeiros (Ecl. 1,5; Gen. 1,16, etc)... Sobre História Natural e Cosmografia fala-se da lebre entre os animais ruminantes, o morcego é catalogado entre as aves (Deut. 14,7; Lev. 11,4 e 19), o céu está apoiado sobre colunas (Job. 26,11). Todas estas coisas devem entender-se segundo as aparências externas e a opinião popular ou em 1inguagem poética. Contudo é necessário ter em conta que, ainda que a Sagrada Escritura não tenha como finalidade principal ensinar-nos coisas em matéria científica existem contudo casos nos quais as afirmações bíblicas têm uma certa repercussão no campo científico. Por exemplo, a Bíblia ensina a criação divina da matéria, das plantas e dos animais; fica portanto posta de parte a teoria da eternidade da matéria e a da origem da vida por geração espontânea; a Bíblia afirma a intervenção particular de Deus na aparição do homem sobre a Terra e por conseguinte não é admissível o transformismo absoluto e materialista de Darwin; refere que Adão foi constituído por Deus como cabeça do gênero humano; portanto fica posto de parte o poligenismo. (V. B. Martín-Sanchez, Manual de Sagrada Escritura, I, Madrid)
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