A farsa dentro da farsa no caso do Riocentro
por Carlos Tautz
Entre os mais importantes depoimentos de militares envolvidos nas
violências contra opositores da ditadura civil-militar de 64 está o de
um personagem pouco conhecido.
Falando publicamente em 16 de maio à Comissão da Verdade Rubens
Paiva, da Assembléia Legislativa de São Paulo, após ter deposto a
portas fechadas à Comissão Nacional (CNV), o ex-paraquedista Valdemar
Martins de Oliveira, que operou no serviço de espionagem e tortura do
Exército em fins dos anos 1960 e início dos 70, levantou uma hipótese
nova sobre a explosão da bomba no Riocentro em 1981.
A versão mais aceita até hoje é que a explosão atingiu somente os
militares do serviço de repressão que a manuseavam, mas que
originalmente o artefato era dirigido às 20 mil pessoas que, lá dentro
do centro de convenções, assistiam a um show de Música Popular
Brasileira para comemorar o 1º de maio, Dia do Trabalhador.
Oliveira, que participou do grupo em que funcionava um dos chefes
daquela operação no Riocentro, entretanto, disse haver outra
possibilidade.
Ele suspeita que a explosão tenha sido queima de arquivo perpetrada
pelos comandos dos próprios militares atingidos. “Quem disse que eles
não queriam explodir os dois para limpar? Dispositivo de disparo à
distância já existia havia muito tempo” — disse à Comissão paulista o
ex-soldado.
“Eles” seriam os chefes do aparato de repressão, ainda por serem
nomeados. “Os dois” eram o então sargento Guilherme do Rosário (morto
na explosão) e o ex-capitão e hoje coronel Wilson Machado, ambos então
lotados na seção carioca do DOI-Codi (Destacamento de Operações de
Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), que funcionava no
quartel da Polícia do Exército localizado até hoje na rua Barão de
Mesquita, no bairro da Tijuca, Zona Norte do Rio.
Confirmada suspeita, haveria então uma reviravolta importante em um
dos mais dramáticos episódios da fase final da ditadura, que ainda hoje
não é conhecido em sua totalidade.
A hipótese da farsa dentro da farsa levantaria também outras
questões: quem operou remotamente as bombas? Por que a queima de
arquivo? Que informações tão importantes guardariam os dois militares
do “atentado” fracassado, a ponto de seu próprio comando ordenar a sua
morte? Que segredos os operadores guardavam e que ainda guardaria o
ex-capitão, hoje coronel, Machado, protegido que está pelo Exército
Brasileiro?
Depois que vieram a público, em fins de 2012 e em início de 2013, os
arquivos pessoais do comandante do DOI-Codi do Rio de Janeiro em 1981,
coronel da reserva Júlio Miguel Molina Dias, sabe-se que aquela era uma
até agora mal contada missão dupla, a Missão 115 — Operação Centro.
De acordo com os arquivos de Molina, assassinado em Porto Alegre,
onde morava, em novembro do ano passado, “a ação previa que os
militares fizessem a espionagem do show no Riocentro, celebração do Dia
do Trabalhador, que virou manifesto contra a ditadura.
Foram escalados dois agentes, com previsão de saída às 18h40min e
retorno às 4h20min, usando um Fusca. Outros dois, de forma clandestina,
usaram um Puma particular”, escreveram no jornal gaúcho Zero Hora (ZH) os jornalistas José Luis Costa e Humberto Trezzi, baseados nos arquivo de Molina.
“Quarta-feira, 20 de maio de 1981 – Em um documento reservado,
enviado ao chefe do serviço de inteligência do 1º Exército, Molina
comunica os nomes dos agentes do DOI-Codi escalados oficialmente
[note-se o “oficialmente”] para “cobrir” o show: sargento da
Aeronáutica Carlos Alberto Henrique de Mello e o soldado da Polícia
Militar Hirohito Peres Ferreira. O ofício afirma que o chefe da Seção
de Operações, capitão Machado, e o sargento Rosário [os vitimados na
explosão no Puma] foram ao Riocentro para supervisionar a equipe. Seria
a primeira vez que o nome de Machado e Rosário aparecia em um documento
oficial como tendo participado da desastrada Missão 115”, continuou o ZH, reproduzindo as anotações do coronel Molina.
O Inquérito Policial Militar, arquivado em 2001, registra ainda que
no local também estavam o coronel Freddy Perdigão (morto em 1997), que
chefiou o DOI-Codi em 68 quando Oliveira fazia parte dos grupos de
espionagem, e um civil, identificado como o carpinteiro Hilário José
Corrales, conhecido ativista da direita subversiva daqueles anos.
Na época da bomba no Riocentro, a versão sustentada pelo Exército,
já em si reconhecida pela CNV como uma farsa, dá conta de que o
artefato que explodiu no colo de Rosário foi colocado ali pela
Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR, um dos grupos da esquerda
armada que resistia à ditadura.
A tese, frágil, sempre foi questionada por vários pesquisadores e
jornalistas, que sustentavam a hipótese de o artefato ter explodido por
erro do seu operador, Rosário, matando-o, e ferindo gravemente o então
capitão Machado, que sobreviveu a essa típica ação de terrorismo dos
órgãos militares de repressão política.
A novidade está não apenas na hipótese levantada por Oliveira, que
desde o início dos anos 2000 vem aparecendo aqui e acolá na imprensa,
dando novos elementos a alguns casos escabrosos.
Entre suas denúncias recentes, em São Paulo, está a revelação do
duplo assassinato em 1968, em São João de Meriti (RJ), a tiros na nuca,
com balas de pistola 45, do casal de estudantes Catarina Helena e João
Antônio Abi-Eçab, por Freddie Perdigão, àquela época comandante do
DOI-Codi na PE da Barão de Mesquita. Perdigão, descobriu-se depois, era
muito próximo do sargento Rosário , e também se encontrava no local do
atentado.
As denúncias de Oliveira vêm à tona poucos meses após o coronel da
reserva Molina ter sido assassinado com três tiros, em 1 de novembro de
2012, em Porto Alegre, no bairro Chácara das Pedras. A primeira linha
de investigação da Polícia Civil do Rio Grande do Sul seria a de que
ele reagiu a uma tentativa de assalto à sua casa, onde guardava uma
coleção de 20 a 23 armas, entre pistolas, espingardas e revólveres.
Poucos dias depois do crime, o armamento foi recolhido em uma
operação que envolveu dois Jeeps e um caminhão do Exército. “A família
solicitou que as armas fossem recolhidas e atendemos o pedido. Elas
foram fotografadas, catalogadas e guardadas em local seguro”, disse ao ZH o coronel José Carlos Vianna, chefe do Estado-Maior do Comando da 3ª Região Militar do Exército.
A Polícia Civil do Rio Grande do Sul tem como principal linha
investigatória a tese de crime sem motivação política e, desde novembro
do ano passado, trabalha até com a hipótese de crime passional. Mas, a
quantidade (10 a 15) e a variedade de cápsulas de projéteis (de 9mm, de
.45 e de .380) encontrados no local do crime, e o fato de testemunhas e
câmeras de segurança da área registrarem que o Citroen C4 de Molina foi
seguido por um Gol vermelho, abrem também a possibilidade de crime
encomendado.
Em 18 de dezembro passado, a polícia gaúcha prendeu por suspeita de
terem assassinado Molina o soldado da Polícia Miliar do RS gaúcha Denys
Pereira da Silva, de 23 anos, e um suposto comparsa, de 31. Exame de
balística mostrou que as balas recolhidas no local do crime, e que
supostamente mataram Molina, saíram de uma pistola apreendida na casa
do militar.
O cenário composto pelas revelações de Oliveira e pelo assassinato
do coronel Molina abrem novas hipóteses para o Caso Riocentro, um
evento central que ajudou muito a acelerar o fim da ditadura.
Assim, ainda que as novas informações não se confirmem, nem que a
morte de Molina não tenha mesmo passado de crime sem motivação
política, a série de depoimentos à CNV de militares ligados à repressão
precisa dar passos maiores do que os foram dados até aqui.
Uma decisão importante seria a reconvocação, em fala aberta ao
público, do ex-paraquedista Oliveira e, finalmente, o depoimento,
também público, de peças-chave nessa história do Riocentro: o hoje
coronel Wilson Machado, o ex- sargento da Aeronáutica Henrique de Mello
(que em julho de 2012 ganhou patente e soldo de capitão, por decisão do
juiz federal no Rio Iorio Forti) e, se ainda estiverem vivos, o soldado
da PM do Rio Hirohito Peres Ferreira e o “carpinteiro” Corrales.
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