Se
acreditarmos no folclore bíblico, o crime é um hábito inveterado do
homem. Ele ritmou e comandou inicialmente a mais velha "história", a
"era mítica" que mais de uma mitologia antiga imaginou, das origens do
mundo até o momento em que, por meio de retoques mais ou menos amplos ou
brutais, a imagem do universo e do homem foi levada ao estado que todos
conhecemos, de memória universal, e começou a funcionar como desde
então sempre funcionou.
Segundo a
mitologia dos hebreus, o primeiro Homem que apareceu aqui embaixo -
incitado por sua Mulher, que fora enganada pela Serpente - desobedeceu a
Deus e comeu do Fruto proibido. É preciso que uma insubordinação como
essa tenha sido tomada como um ato criminoso monstruoso, como uma
verdadeira revolta, se julgarmos pelo terrível e definitivo castigo que
implicou: a Mulher foi definitivamente condenada às dores do parto e à
tirania do Homem, e este, a só poder subsistir ao preço de um trabalho
extenuante (Gênesis III).
Dos
primeiros filhos do casal, expulso para sempre de sua beatífica morada
original, Caim assassina seu irmão Abel, do qual tem ciúmes, e este
também é banido e condenado a uma vida errante e amedrontada.
Entre os
descendentes do assassino surge uma espécie de besta, Lamec, que se
gaba de ser muito mais sanguinário que Caim: "Por uma ferida, eu matarei
um homem, e por uma cicatriz matarei um jovem. Se a vingança de Caim
valia por sete, a de Lamec valerá por setenta e sete" (IV, 23).
Depois
disso, ao longo das gerações, o crime se difunde em toda parte, de tal
maneira que Deus fica desapontado ao ser obrigado a constatar "que a
maldade do homem crescia na terra e que todo projeto do coração humano
era sempre mau" (VI, 6). E decide aniquilá-lo com o Dilúvio, excetuando
apenas o único justo, o único irrepreensível: Noé, salvo do cataclismo,
com sua família, em sua "arca" flutuante (VI, 15; VIII).
Passado o
Dilúvio, Cam, segundo filho do herói, ultraja gravemente seu pai - de
acordo com as ideias que se tinham então das coisas - ao contemplá-lo
totalmente nu e comprazendo-se na embriaguez: esta curiosidade doentia
devia constituir, por si mesma, um novo crime, um imperdoável atentado,
para que Noé maldissesse o culpado a ponto de fazer dele o pai de
gerações de escravos (IX, 20s).
Enfim,
os homens, novamente espalhados sobre a terra, conspiram para nada mais
nada menos que afrontar Deus em pessoa, alçando-se assim para falar à
Sua altura por meio de uma torre que lhes permitirá "(chegar) até o
céu", simples "começo de seus empreendimentos" maléficos, como se nada
mais pudesse freá-los na devastação de todos os interditos e na
progressão do crime. É por isso que, confundindo e multiplicando suas
línguas, Deus os condena a não mais se entenderem uns aos outros, o que
os predispõe a agredirem-se e matarem-se (XI).
E essa
sucessão arcaica, original e obstinada dos crimes passados, portando em
germe os crimes futuros, sem número e sem termo, que leva Deus, como
desalentado diante da súcia malfeitora e perversa dos homens, a
preparar, unicamente para Si, uma comunidade restrita, que será, como
Noé em seu tempo, a única justa, inocente e irrepreensível: Seu povo
particular, que jamais deveria decepcioná-lo. Assim parte Ele para
longe, no início da "era histórica", para buscar Abraão e trazê-lo ao
teatro em que pretende vê-lo viver e proliferar-se para tornar-se o pai
do povo de acordo com Seu coração (XI, ls).
Vê-se
que, antes mesmo do início da história, o passado mais antigo do mundo,
na mitológia bíblica, não passou de uma seqüência de catástrofes,
comandadas a cada vez por crimes e pela repressão deles: pela reação
legítima de Deus diante dos atos celerados dos homens.
As
coisas infelizmente não se detiveram aí, e o relato bíblico foi obrigado
a registrar, no decorrer dos tempos "históricos", uma nova e
interminável série de ações criminosas, ora duramente castigadas, ora
sem punição discernível, e até mesmo no seio do "povo de Javé". Basta
reler os detalhes das abominações de Sodoma e de sua destruição (XIX);
do ciúme de Sara, que obriga Abraão a expulsar Agar, mãe de seu filho
Ismael, sob o risco de condená-los à morte com esse afastamento e esse
abandono (XXI, 9s); do estupro de Dina por Siquém e da cruel vingança de
Simeão e Levi (XXXIV); e assim sucessivamente, em uma longa litania,
prolongada até o fim da bíblia. Sequer o rei ideal, o nobre e sedutor
Davi, escapa, quando, depois de ter olhado do alto de seu terraço uma
mulher "muito bonita" tomando banho e tê-la violentamente desejado e
tornado mãe, livra-se hipocritamente do marido, fazendo com que o
coloquem no centro de uma batalha sangrenta (II Samuel XI).
Tudo se
passa como se, desde a primeira revolta criminosa do pai de todos os
homens, a Má ação, com demasiada frequência alçada a este superlativo
que é o Crime, houvesse entrado em nossa natureza, tornando-se conatural
a nós, infectando todos os homens, até mesmo os do "povo eleito". Como
observará muito mais tarde Coélet, filósofo que via as coisas de cima,
"Deus fez o homem correto, mas o homem inventa muitas complicações"
(Eclesiastes VII, 29).
Entretanto,
não são o termo e a ideia de crime que dominam a bíblia, mas os de
pecado, cujo alcance não é de maneira alguma o mesmo. Como se, para além
do horror, da selvageria, da violência, do excesso e da vergonha de
cada crime relatado, se quisesse destacar, como verdadeira razão de sua
reprovação, seu caráter de "pecado": isto é, de recusa de obedecer a
Deus, de rebelião contra Sua vontade e, portanto, contra Sua pessoa. Na
bíblia, a gravidade do crime não é tomada pelo lado de seu caráter
ignóbil, insuportável e atroz, como espetáculo condenável, mas do lado
de Deus, a quem, simples e miserável criatura, o homem resiste por meio
de tal ato e contra quem se insurge e desafia. Antes de ser aos nossos
olhos um crime, a ação criminosa, na bíblia, é primeiramente condenada
por Deus pelo fato de ser rebelião e "pecado". Consumado o adultério e
assassinado o marido, Davi vê chegar a ele um daqueles intratáveis
representantes da fidelidade a Javé, que se consideravam "enviados" por
Ele, e que o censura violentamente, como o rei que é, por seu excesso
criminoso, pelo fato de ser reprovado por Deus: "Então por que você
desprezou Javé e fez o que Ele reprova?" (II Samuel XII, 9).
A
religião de Israel, da qual a bíblia é ao mesmo tempo a carta de
fundação e o dossiê de história, via, quanto a esse assunto, as coisas
sob um ângulo bastante particular.
Os
hebreus eram semitas e faziam, portanto, parte de um grupo cultural
determinado, um dos mais antigos conhecidos, atestado, na Mesopotâmia, o
mais tardar desde os primórdios do terceiro milênio, por sua linguagem,
que revela obrigatoriamente uma cultura própria. Do ponto de vista
religioso, o que sabemos sobre eles nos leva a pensar que tinham uma
ideia bastante elevada da natureza e do papel dessa espécie de mundo
sobrenatural que toda religião, de uma maneira ou de outra, sobrepõe ao
nosso nível visível e palpável, a fim de nos fornecer a razão de ser de
nossa existência e de seus grandes movimentos.
Na
Mesopotâmia, via-se nele a projeção magnificada da classe política, que,
nesse país, havia desde sempre assumido uma forma estritamente
monárquica. Como tais, os deuses haviam criado os homens para
desempenhar em relação a eles o mesmo papel dos súditos para com seu
rei: prover com seu trabalho todas as necessidades deles, análogas às
nossas - alimentação e bebida, roupas e ornamentos, edifícios para
moradia, existência agradável e festiva -, que lhes eram asseguradas sob
a forma de estátuas e imagens nos templos a eles erigidos. Nisso
residia o essencial do culto que lhes era consagrado e, uma vez que nos
haviam inventado e posto no mundo com esse objetivo preciso, eles não
pediam mais. Mas também desempenhavam, em relação aos humanos, o papel
do soberano e de seus auxiliares para com os súditos: tudo o que, para
os homens, constituía uma obrigação ou uma defesa emanava da vontade
deles, e quem quer que infringisse uma delas se tornava passível de um
castigo, o qual tomava a forma desses aborrecimentos, males ou
infortúnios que vêm de repente - inexplicavelmente - sombrear ou abalar
nossa existência, e que ali encontravam sua justificação.
Temos
apenas uma ideia bastante vaga da primeira religiosidade dos israelitas,
que apareceram somente em meados do segundo milênio a.e.c. Ao modo
deles, mais modesto e menos intelectualmente sistematizado, visto seu
estado de nômades rudes, com certeza evocavam de maneira vaga e em
pequeno formato o afresco amplo e multicolorido do panteão e do sistema
mesopotâmicos.
Entretanto,
no início do século XIII a.e.c., um deles, conhecido com o nome de
Moisés, quis ao mesmo tempo dar- lhes um país que fosse deles - aquele
que chamamos de "Palestina" - e ligar esse novo destino "nacional" a uma
forma religiosa inédita que, em sua alma aberta e ardente, havia
elaborado. Num mundo, porém, universalmente politeísta, ele preconizava
que seu povo não devia se preocupar com os outros deuses, mas ligar-se a
um só, de nome Javé, ao qual deveria permanecer para sempre e
exclusivamente fiel, pois Ele protegeria Seu povo ainda frágil e
asseguraria o sucesso de suas ambições territoriais e políticas. E para
que esse Deus reservado aos hebreus permanecesse separado das outras
inúmeras divindades veneradas pelos povos, não se devia tentar
figurá-lo, representa-lo por meio de imagens ou estátuas: bastava saber
que ele existia e daria a mão ao seu povo. Recorrendo a uma formalidade
usual entre os antigos semitas, Moisés havia realizado e imaginado,
entre Javé e seu povo, um verdadeiro pacto de Aliança: o povo se
comprometia a permanecer ligado exclusivamente a seu deus, e esse último
a apoiá-lo, contra ventos e marés.
Nova e
admirável "invenção" de Moisés, decididamente à contracorrente de tudo o
que se fazia em toda parte, o apego de seu povo ao seu deus não se
manifestaria, como ocorria entre outros povos, inclusive mesopotâmios e
outros semitas, por meio de um serviço de bens e provisões materiais -
templos magníficos, roupas e ornamentos de valor, oferendas cotidianas e
pluricotidianas de alimentos e outros subsídios -, mas unicamente pela
conduta e obediência exclusiva, alienatória e total a uma espécie de
"código moral", algo como aquele que a bíblia conservou para nós e que
chamamos de "Decálogo":
Eu
sou Javé seu Deus (...)/ Não tenha outros deuses além de mim./ Não faça
para você ídolos (...)/Não se prostre diante desses deuses, nem sirva a
eles, porque eu, Javé seu Deus, sou um Deus ciumento (...)/Não pronuncie
em vão o nome de Javé seu Deus, porque Javé não deixará sem castigo
aquele que pronunciar o nome dele em vão./ Lembre-se do dia de sábado,
para santificá-lo./ Trabalhe durante seis dias e faça todas as suas
tarefas./ O sétimo dia, porém, é o sábado de Javé seu Deus. (...)/Honre
seu pai e sua mãe(...)/Não mate./ Não cometa adultério./ Não roube./ Não
apresente testemunho falso contra o seu próximo./ Não cobice a casa do
seu próximo, nem a mulher do próximo, nem o escravo, nem a escrava, nem o
boi, nem o jumento, nem coisa alguma que pertença ao seu próximo.
(Êxodo XX, 2-17)
Essa
polarização ética de toda a atividade religiosa desenvolveu um
sentimento agudo das obrigações de cada um, e do alcance delas. Num
tempo em que o mundo - e muito menos esse povo alienado - ainda não
estava, nem de longe, "desencantado" - e em que a religião acompanhava e
recobria todo o campo da atividade humana, ainda mais entre aqueles que
sentiam o "sobrenatural" tão profundamente mesclado à sua história -
qualquer infração do "código moral" e daquilo que ele implicava, em
detalhes, para além de suas grandes rubricas, qualquer transgressão, era
estimada e julgada de saída em virtude do critério fundamental que a
ligava à vontade de Deus e às obrigações para com Ele baseadas na
Aliança e em seu pacto fundador. Conforme essa vontade e esse "código",
tal ação era regular e própria do que Deus esperava de Seu povo; caso
contrário, em qualquer que fosse o domínio da conduta, ela constituía
antes de tudo um pecado, e era primeiramente por esse viés que suscitava
reprovação e condenação.
A
prioridade de um critério e de uma proscrição desse tipo foi, ao longo
dos séculos, consideravelmente reforçada na consciência dos israelitas
pela evolução de seu próprio destino e pela explicação que dela era dada
pelos fiéis mais sobejos de Javé, aqueles que eram chamados de
"profetas", por vocação renhidos defensores do integrismo religioso.
Dilacerado, após um momento de glória, por terríveis dissensões internas
e tristes fracassos políticos, o povo de Israel se via, o que era ainda
pior, como vítima regular e impotente das impiedosas invasões
conquistadoras empreendidas pelos formidáveis mesopotâmios. Ora,
repetiam desafiadoramente os "profetas", isso tudo era apenas o castigo
prometido por Javé às incessantes transgressões - é preciso dizer,
humanamente inevitáveis - que os israelitas acumulvam contra seu Deus.
Egoísmo e rapacidade de uns contra os outros, preferência pelos baixos
prazeres da vida, maldades e atentados cada vez maiores, perversão do
espírito para justificar a qualquer preço a má conduta, soberba e
vaidade, desonestidade e injustiça, além de outros crimes, eram
primeiramente condenados apenas por Deus, isto é, dito de outra maneira,
como insultos e pecados dirigidos a esse tirano divino:
Ai
daqueles que juntam casa com casa e emendam campo a campo, até que não
sobre mais espaço e sejam os únicos a habitarem no meio do país./ (...)
Ai daqueles que madrugam procurando bebidas fortes e se esquentam com o
vinho até o anoitecer./ Em seus banquetes, eles têm harpas e liras,
tambores e flautas, e vinho para suas bebedeiras (...)/ Ai dos que
arrastam a culpa com cordas de bois, e o pecado com tirantes de uma
carroça (...)/ Ai dos que dizem que o mal é bem, e o bem é mal, dos que
transformam as trevas em luz e a luz em trevas, dos que mudam o amargo
em doce e o doce em amargo!/ Ai dos que são sábios a seus próprios olhos
e inteligentes diante de si mesmos!/ Ai dos que são fortes para beber
vinho e valentes para misturar bebidas,/ Dos que absolvem o injusto a
troco de suborno e negam fazer justiça ao justo! (Isaías 8-23)
Era esse
o tom do discurso "profético", e pode-se compreender sem dificuldade
como ele podia obliterar inteiramente o campo da consciência ao
implantar nele a ideia central do pecado. Quaisquer que fossem os
efeitos propriamente judiciários dos delitos e dos crimes da alçada do
poder "civil" (a bíblia praticamente não aborda esse tema), a conduta
tinha apenas um único juiz, supremo e sem recursos: Deus. E o peso, o
perigo, o prejuízo, a abominação das más ações e dos crimes tinham menos
importância que sua ignomínia essencial, a recusa de obedecer-lhe, que o
obrigava, uma vez que Ele era absolutamente justo, a vingar-se sem
falta, infligindo Ele mesmo a seus autores o castigo merecido: o
infortúnio.
As
coisas foram tão longe que um verdadeiro crime, aos nossos olhos, podia,
comandado por Deus, ser tomado como uma ação admirável, heróica... É o
sentido da história do assassinato de seu filho, exigido de Abraão por
Deus: "Deus pôs Abraão à prova, e lhe disse (...)/ 'Tome seu filho, o
seu único filho Isaac, a quem você ama, vá à terra de Moriá e ofereça-o
aí em holocausto, sobre uma montanha que eu vou lhe mostrar!"' (Gênesis
XXI, 1-2). É claro, como é dito com todas as letras, que Deus queria
apenas "pôr à prova" a obediência e a devoção de Abraão, mas este partiu
imediatamente, sem pestanejar, para executar essa ordem atroz, e se seu
braço se deteve no final, no momento em que erguia a faca para matar o
filho, não é menos verdade que ele havia aquiescido sem delongas, sem
dizer palavra, sem hesitar, àquela ordem tão objetivamente criminosa.
Tudo se
passa como se, na bíblia, do começo ao fim, a exclinica unidade de peso
na balança das ações humanas houvesse sido, não o sentimento do
"Direito", escrito ou não, mas a Vontade de Deus, desse ser pintado pela
mitologia hebráica como um tirano divino, mesquinho, vaidoso,
incoerente com seus próprios objetivos e também incompetente por criar
uma raça de seres imperfeitos que mesmo incessantemente castigados,
voltam a "ofender" e a cometer "crimes" pecando contra sua vontade; e
como se, por mais terrível, inumano, odioso ou atroz que fosse, o crime
houvesse assumido e conservado sua significação intrínseca de ato a ser
condenado e evitado sobretudo a partir de sua qualidade de pecado.
Incorporada,
por meio da mensagem do cristianismo, à própria raiz de nossa
civilização, semelhante convicção pesou bastante na formação de nossa
consciência e nesse extraordinário "senso do pecado" que a invadiu,
ainda que se desvie com demasiada frequência na direção de um certo
juridismo, tão distante da religiosidade autêntica...
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