Bem no final da Revista Adventista de junho de 2004,
na seção
"Reflexões", o articulista Reinaldo Siqueira,
professor de teologia no Salt de Engenheiro Coelho,
apresenta no artigo, "O evangelho e os judeus" o
motivo, segundo sua visão, que dificulta a aceitação
do Cristianismo pela nação judaica. Para o
articulista, a maior dificuldade que um judeu encontra
para aceitar a religião cristã, é "a rejeição da Lei
no seio cristão, especialmente na mudança do sábado
para o domingo." Para referendar sua afirmação, o
articulista afirma que ela esta baseada em "teólogos e
historiadores."
O propósito deste artigo não é discordar do professor
Reinaldo Siqueira e muito menos corrigi-lo. O objetivo
deste artigo é ampliar a compreensão do assunto
tratado pelo professor Siqueira, pois ao nosso modo de ver, dois
outros motivos, tão importantes quanto a mudança da
Lei, não foram apresentados. Antes de apresentar os
outros dois motivos que faltaram no artigo do
professor do Salt, para uma mais clara compreensão do
assunto, é de extremo proveito perceber como foi o
encontro da mentalidade cristã com a mentalidade pagã,
e qual foi o resultado deste encontro.
Como sabemos, o Cristianismo nasceu dentro das
fronteiras do Império Romano, dentro do seio da
religião judaica. O Cristianismo é herdeiro dos
profetas, da noção de tempo linear, da promessa de um
Messias, da crença na criação especial do mundo, da
idéia do fim do mundo e da instauração de uma nova
terra, entre muitas outras tradições religiosas dos
judeus. Resumindo, o Cristianismo ao nascer, era como
um prolongamento do judaísmo, o encontro do tipo com o
antítipo que previa o abandono de coisas específicas
(rituais de sangue no templo, circuncisão, festas
comemorativas) do sistema judaico. Assim, não é
surpresa que os judeus no início da pregação
evangélica, aceitassem com alegria a nova fé.
O
Cristianismo primitivo preservou os alicerces do
judaísmo, que eram a Lei, a distinção entre animais
limpos e imundos, a lembrança da saída do Egito, a
crença no fim do mundo e na recriação de todas as coisas, com a ressurreição dos
fiéis e,
principalmente, a crença em um único Deus pessoal.
Raízes abandonadas
Para convencer seus irmãos judeus, os primeiros
evangelistas judeus-cristãos, não tinham outro
argumento, senão o livro da Lei e os profetas. No
início, não havia incompatibilidade inamovível entre o
Judaísmo e o Cristianismo. Quais os motivos que
levaram o Judaísmo e o Cristianismo à
incompatibilidade? Seguramente, foram as mudanças que
o Cristianismo sofreu ao se encontrar com as tradições
greco-romanas dentro do Império Romano e com as
tradições religioso-culturais trazidas pelos povos
que forçavam as fronteiras romanas.
"Na história das civilizações, como na dos indivíduos, a infância é decisiva. Muito, senão tudo, se joga então. Entre o século V e o século X nascem hábitos de pensamento e de sensibilidade, temas e obras que formam e informam as futuras estruturas das mentalidades e das sensibilidades medievais.(...) Isso é especialmente sensível na Alta Idade Média ocidental. E a mais evidente novidade cultural está nas relações que se estabelecem entre a herança pagã e o contributo cristão - supondo, bem longe da realidade, como se sabe, que tanto um como outro formaram um todo coerente. (...) Devemos dizer dois adversários? O debate - e conflito - entre a cultura pagã e o espírito cristão encheu a literatura paleo-cristã; encheu depois a literatura da Idade Média; e, em seguida, encheu muitos trabalhos modernos dedicados à história da civilização medieval. E é verdade que ali se opunham dois pensamentos e duas sensibilidades - como hoje em dia se opõem o marxismo e a ideologia burguesa. A literatura pagã, em bloco, é na Idade Média cristã um problema; mas a questão já no século V, estava de fato, resolvida. Até ao século XIV haverá extremistas de duas tendências opostas: aqueles que proscrevem a utilização, e mesmo a leitura, dos autores da Antiguidade e aqueles que largamente os usam de maneira mais ou menos inocente. (...) A atitude fundamental, porém, fora definida pelos padres da Igreja e perfeitamente formulada por Santo Agostinho, que dizia que os cristãos deviam recorrer à cultura da Antiguidade do mesmo modo que os judeus tinham recorrido aos despojos dos Egípcios. ' Se os filósofos (pagãos) exprimiram, por acaso, verdades úteis à nossa fé - em especial os filósofos platônicos, - não só não há que recear tais verdades como é preciso arrancá-las para nosso serviço, a esses detentores ilegítimos.' " -- LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, Vol I. p.149-150.
Segundo Jacques Le Goff, maior especialista mundial em
Idade Média do mundo, os padres da Igreja no século
IV, foram buscar na filosofia pagã, "verdades" que
poderiam ser "úteis" ao Cristianismo. Os padres da
Igreja pós-primitiva entraram tão fundo no
pensamento pagão, que segundo uma lenda, S. Jerônimo
"sentiu-se um dia chamado em sonhos por Deus, que
severamente lhe disse: '...Ciceronianus es, non
christianus' - Alcuíno terá acerca de Virgílio um
sonho semelhante. Jerônimo define, porém, o mesmo
compromisso que Agostinho: que o autor cristão
utilizasse os seus modelos pagãos como os judeus do
Deuteronômio tinham utilizado as prisioneiras de
guerra, a quem rasparam a cabeça, cortaram as unhas e
deram roupas novas para depois as desposar." LE GOFF,
Jacques. p. 150.
Ainda segundo o mesmo autor, "o pensamento antigo só
humilhado, deformado e atomizado pelo pensamento
cristão pôde sobreviver na Idade Média. Obrigado a
recorrer aos serviços do inimigo vencido, o
cristianismo viu-se constrangido a desmemoriar o
escravo prisioneiro e a fazê-lo trabalhar para si no
esquecimento das suas próprias tradições." LE GOFF, Jacques. p. 151.
O Cristianismo, graças ao trabalho dos teólogos
cristãos pós-apostólicos, abandonou suas origens
judaicas e sincretizou-se com a cultura e tradições
pagãs.
O teólogo pós-apostólico do Ocidente maior responsável
pelas influências do paganismo no seio do
Cristianismo, foi o dito "Santo Agostinho". Considerado o maior
doutor da igreja e mestre do Ocidente. Santo
Agostinho, nascido em 354 na província romana da
Numídia, filho de pai pagão e mãe cristã, morreu em
430 aos 76 anos de vida. Santo Agostinho durante sua
vida, transitou por todas as correntes da filosofia
pagã indo do maniqueísmo ao neoplatonismo. Foi no
neoplatonismo que Agostinho encontrou as bases sobre
as quais iria formular seu pensamento religioso,
principalmente a sistematização do dogma trinitariano.
"Enquanto Agostinho, já prestes a fazer-se crente,
forcejava por superar sua ignorância e dissipar suas
dúvidas angustiantes, ocorreu um fato decissivo para
seu desenvolvimento futuro: o encontro com o neoplatonismo. Embora muitas coisas lhe parecessem
obscuras, a sua fé, conquanto ainda imperfeita, não
deixava de fortalecer-se dia a dia. Em conseqüência
disso, o encontro com o neoplatonismo, que lhe
proporcionou uma metafísica do espírito, foi
grandemente proveitoso para o jovem Agostinho." -- BOEHNER, Fhilotheus. GILSON, Etienne. História da
Filosofia Cristã. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. p.
146.
Agostinho foi buscar no pensamento neoplatônico as
bases para o Dogma da Trindade.
"A trindade platônica. Platão concebe a existência de
três elementos eternos, os quais caracterizam sua
ontologia:
(1) idéias arquétipas,
(2) Demiurgo,
(3) matéria eterna.
De futuro, o neoplatonismo, sobretudo o de Plotino,
dará aos três elementos uma sequência dinâmica, com
três processões, que serão adotadas pelos teólogos
cristãos para racionalizar sua crença na
multiplicidade trina das Pessoas divinas."
www.logoshp.hpg.ig.com
"Para Platão três princípios eternos constituem o
todo, - as idéias separadas, o Demiurgo, a matéria.
Por acréscimo dão-se as formas criadas, - ditas
sombras enquanto se modelam nos arquétipos, - com
vistas a ordenar o matéria informe todavia eterna, de
onde resulta o cosmos e as almas que nele vivem.
Os três princípios eternos constitutivos do todo se
apresentam como sendo uma Trindade. Futuros
desdobramentos poderão sintetizar esta Trindade,
reduzindo-a à unidade. Ou, inversamente, poderão
desenvolvê-la para estabelecer em Deus a Trindade das
pessoas.
Não sintetizou Platão os três princípios, como seria
depois fácil de imaginar, que outros o fizessem.
Por exemplo, as idéias separadas poderiam situar-se em
um só ser, chamado Deus.
Com referência à matéria, poderia ser concebida como
ser criado, do mesmo modo como as formas corpóreas e
as almas, entretanto a matéria eterna em Platão é
senão o eco do dualismo, irredutível da matéria e
espírito, peculiar ao orfismo e aos cultos vindos do
Oriente persa.
Na concepção platônica sobre a realidade total se
encontra latente a crença da Trindade das pessoas
divinas." www.cfh.ufsc.br
A 2ª Doutrina Espúria
Já no IV século, o Cristianismo havia abandonado suas
heranças judaicas mais significativas: o sábado,
quando Constantino, imperador romano, o troca pelo
domingo, dia do deus sol; a crença em um e único Deus
pessoal reconhecido na pessoa do Pai. Como se já não
fosse suficiente, o Cristianismo que se afastou de
suas origens judaicas, adota também do paganismo
greco-romano, a crença na imortalidade da alma.
"De antemão podemos avançar o seguinte dado que parece ser inquestionável: Não pertence ao querigma fundamental do Novo Testamento o tema da imortalidade da alma. O Novo Testamento conhece e professa sua fé na ressurreição dos mortos. A filosofia grega, nomeadamente o platonismo, sob cuja influência esteve a jovem igreja missionária no mundo helênico, conhece a imortalidade da alma. Mas não conhece nem pode imaginar uma ressurreição. A reflexão na teologia cristã conciliando os aut-aut com um et-et formulou a seguinte proposição: a alma é imortal. Depois da morte do justo, separada do corpo, ela é julgada por Deus e goza de sua presença até o fim do mundo quando será novamente re-unida ao corpo agora ressuscitado para com ele gozar eternamente do comunhão com Deus. A doutrina da imortalidade da alma dos gregos foi completada com a outra bíblica da ressurreição dos mortos. Com isso se afirma:
a- a morte não é total: atinge apenas o corpo do homem;
b- a ressurreição também não é total: atinge tão somente o corpo..." -- BOFF, Leonardo. A Ressurreição de Cristo, A Nossa Ressurreição na Morte. Petrópolis: Vozes, 1986. págs. 66, 67.
Como demonstramos, não foi somente a mudança do sábado
para o domingo que afastou os judeus do Cristianismo.
O afastamento foi provocado pelo contínuo a
progressivo abandono da herança judaica do
Cristianismo que foi realizado pelos cristãos vindos
do paganismo.
A herança pagã que hoje faz parte da mentalidade
cristã, é extensa e fácil de se verificar. O exemplo
mais enfático é o Natal, com sua imagem do papai-noel
e a árvore de natal, costumes e tradições
declaradamente pagãs, sem falar nas festas juninas aos
santos católicos, como substitutas das festas pagãs da
Europa antiga.
O regime alimentar judeu com a abstinência de animais
imundos, foi substituído pelo Cristianismo dos
teólogos pós-apostólicos pela permissão de comer tudo
que se move sobre a face da terra, inclusive seu
sangue e gordura. O batismo cristão original foi
abandonado, a santa ceia original foi abandonada, a
páscoa foi transformada em comércio pelos cristãos e
os cristãos, agora em sua maioria ex-pagãos, quando se
sentiram fortes, voltaram suas armas contra aqueles
que ainda queriam preservar as heranças judaicas do
cristianismo, quer fossem judeus ou não. Os cristãos,
agora já embriagados com as tradições pagãs, fizeram e
fazem dos judeus seus inimigos mortais e a história
está ensangüentada com o sangue dos judeus que foi
derramado pela intolerância religiosa dos falsos
cristãos.
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