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quinta-feira, 6 de junho de 2013

O santo graal e a linhagem sagrada |(trecho)

A História de Wolfram Von Eschenbach
O mais famoso e mais significativo dos romances sobre o cálice é
Parzival, composto entre 1195 e 1216. Seu autor foi Wolfram Von
Eschenbach, um cavaleiro originário da Bavária. No início, pensamos
que isso poderia distanciá-lo do assunto, tornando sua narrativa
menos confiável que as outras. Mas logo concluímos que, se alguém
podia falar com autoridade sobre o cálice, seria Wolfram.
No início de Parzival, Wolfram afirma que a versão de Chrétien sobre
a história do cálice é errônea, enquanto a sua é precisa, pois baseada
em informação privilegiada. Explica depois que obteve esta
informação de um certo Kiot de Provence, que por sua vez a recebera
de um certo Flegetanis. Vale a pena citar as afirmações de Wolfram:
Todos que me perguntaram antes sobre o cálice e que me julgaram
mal por não responder estavam errados. Kiot pediu-me para não
revelar isto, pois Aventura ordenou-lhe não pensar nisso até que ela,
Aventura, o convidasse a dizer, e então se deveria falar, certamente.
Kiot, o conhecido mestre, encontrado em Toledo, uma vez liberado,
começou a escrever, de forma pagã, a primeira fonte de sua aventura.
Ele primeiro teve que aprender o abc, mas sem a arte da magia negra
(...).
Flegetanis, um pagão, havia conseguido um grande renome graças
aos seus conhecimentos. Este pensador da natureza descendia de
Salomão e nascera de uma família que havia sido durante muito
tempo israelita, até que o batismo se tornou seu escudo contra o fogo
do inferno. Ele escreveu a aventura do cálice. Pelo lado de seu pai,
Flegetanis era um pagão, que adorava um cordeiro (...).
O pagão Flegetanis podia contar-nos como todas as estrelas se
punham e apareciam de novo (...). Os assuntos e o destino do homem
são ligados ao ciclo das estrelas. Flegetanis, o pagão, viu com seus
próprios olhos, nas constelações, coisas que ele por timidez não
contava - mistérios ocultos. Disse que havia algo chamado cálice, cujo
nome ele havia lido claramente nas constelações. Um grupo de anjos
havia deixado esse cálice na Terra.
Desde então, homens batizados têm tido a tarefa de guardá-lo, e com
tal casta disciplina que aqueles chamados ao serviço do cálice são
sempre homens da nobreza. Assim escreveu Flegetanis sobre essas
coisas.
Kiot, o sábio mestre, dedicou-se a estudar esta fábula em livros em
latim, para ver onde teria havido um povo dedicado à pureza e ao
merecimento de cuidar do cálice. Ele leu as crônicas das terras, na
Inglaterra e em outros lugares, na França e na Irlanda, e em Anjou ele
encontrou a fábula. Lá ele leu a verdadeira história de Mazadan, e o
registro exato de toda sua família lá estava escrito.
É importante observar pelo menos quatro itens, entre os que pedem
comentário nesta passagem. Um deles é que a história do cálice
envolve aparentemente a família de alguém chamado Mazadan. Outro
é que a casa de Anjou é de algum modo de grande importância. Um
terceiro é que a versão original da história parece ter sido filtrada da
Espanha muçulmana para a Europa ocidental através dos Pirineus -
uma afirmação perfeitamente plausível, dada a posição de que gozava
Toledo como centro de estudos esotéricos, tanto judaicos quanto
muçulmanos. Mas o elemento mais surpreendente na passagem é
que a história do cálice, na forma como Wolfram explica sua
derivação, seria em última instância de origem judaica. Se o cálice é
um mistério tão puramente cristão, por que deveria seu segredo ser
transmitido por iniciados judeus? Por que deveriam escritores judeus
ter tido acesso a material especificamente cristão, desconhecido pela
própria cristandade?
Os intelectuais têm gasto tempo e energia discutindo se Kiot e
Flegetanis são reais ou fictícios. Na realidade, a identidade de Kiot,
como descobrimos em nosso estudo sobre os templários, pode ser
solidamente estabelecida. Kiot de Provence foi, quase certamente,
Guiot de Provins, um trovador, monge e porta-voz dos templários que
de fato viveu em Provence e escreveu canções de amor, ataques à
Igreja, canções de adoração ao Templo e versos satíricos. Sabe-se
que Guiot visitou Mayence, na Alemanha, em 1184, durante o festival
de cavalaria de Pentecostes, no qual o imperador do Sacro Império
Romano, Frederick Barbarossa, conferiria a condição de cavaleiro a
seus filhos. Como sempre, a cerimônia era assistida por poetas e
trovadores de toda a cristandade. Sendo cavaleiro do Sacro Império
Romano, Wolfram certamente esteve presente, sendo razoável supor
que se encontrou com Guiot. Homens letrados não eram muito
comuns na época. Eles inevitavelmente formavam um grupo,
buscavam-se uns aos outros, se conheciam; e Guiot pode ter
encontrado em Wolfram um espírito gêmeo, a quem ele talvez tenha
confiado alguma informação, ainda que numa forma simbólica. E se
Guiot permite aceitar Kiot como genuíno, é pelo menos plausível
assumir que Flegetanis também o era. Se não, Wolfram e/ou Guiot
tiveram um motivo especial para criá-lo. E se diz que, ao dar-lhe um
cenário e uma genealogia, eles o fizeram.
Além da história do cálice, Wolfram pode ter obtido de Guiot um
intenso interesse nos templários. Sabe-se, em todo caso, que Wolfram
possuía tal interesse. Assim como Guiot, ele mesmo fez uma
peregrinação à Terra Santa, onde observou os templários em ação. E
em Parzival enfatiza que os guardiães do cálice e a família do cálice
são templários. Isto pode ser devido, é claro, à vaga cronologia e ao
anacronismo cavaleiresco da licença poética, tal como podem ser
discernidos em alguns dos romances sobre o cálice. Mas Wolfram é
muito mais cuidadoso com tais coisas do que outros escritores da
época. Além disso, existem alusões patentes ao Templo em
Perlesvaus. Seriam tanto Wolfram quanto o autor de Perlesvaus
culpados de algum flagrante anacronismo? Possivelmente. Mas
também é possível que alguma coisa mais esteja envolvida nessas
ostensivas conexões entre os templários e o cálice. Pois, se os
templários eram de fato guardiães do cálice, existe um corolário
flagrante: o cálice existiu não somente na época de Arthur, mas
também durante as Cruzadas, quando os romances sobre ele foram
compostos. Ao introduzir os templários, tanto Wolfram quanto o autor
de Perlesvaus podem estar sugerindo que o cálice era não só uma
coisa do passado, como também algo que, para eles, possuía
relevância contemporânea.
Assim, de alguma maneira obscura, o pano de fundo do poema de
Wolfram é tão importante quanto o texto. Assim como a identidade de
Kiot e de Flegetanis, o papel dos templários parece crucial; e estes
fatores podem muito bem representar a chave do mistério que
circunda o cálice. Infelizmente, o texto de Parzival ajuda muito pouco
na solução destas questões e coloca muitas outras.
Em primeiro lugar, Wolfram não só confirma que sua versão da
história do cálice é a verdadeira - é uma espécie de "documento de
iniciação" - como também reafirma que a narrativa de Chrétien é uma
fábula fantástica. Em outras palavras, Wolfram afirma
inequivocamente que existem mais coisas sobre o mistério do cálice
do que podem nossos olhos conceber. E ele torna claro, com
inúmeras referências ao longo de seu poema, que o cálice não é
meramente um objeto de mistificação e fantasia gratuitas, mas um
meio de ocultar algo de imensa importância. Insinua repetidamente
que o leitor deve ler nas entrelinhas, gotejando pistas sugestivas aqui
e ali. Ao mesmo tempo, reitera constantemente a necessidade do
segredo, "pois nenhum homem pode jamais ganhar o cálice a menos
que seja conhecido no céu e que seja chamado pelo nome até o
cálice". E "o cálice é desconhecido, exceto por aqueles que foram
chamados pelo nome (...) à companhia do cálice".
Wolfram é preciso e ao mesmo tempo evasivo ao identificar o cálice.
Quando este aparece pela primeira vez, durante a estada de Parsifal
no castelo do rei pescador, não há uma indicação real de sua
natureza. Contudo, ele pareceria ter algo em comum com a vaga
descrição de Chrétien:
Ela [a rainha da família do cálice] usava um vestido de seda árabe.
Sobre um achmardi verde profundo ela continha a perfeição do
paraíso, raiz e tronco. Aquela era uma coisa chamada cálice, que
sobrepuja toda perfeição terrestre. Repanse de Schoye era o seu
nome, a quem o cálice permitiu ser sua guardiã. Tal era a natureza do
cálice que ela, que o guardava, tinha que preservar sua pureza e
renunciar a toda falsidade.
Entre outras coisas, o cálice, neste ponto, parecia ser um tipo
de cornucópia mágica ou como da fartura:
Cem valetes, sob ordem, reverentemente, pegavam pão em
guardanapos brancos em frente ao cálice, recuavam em grupo e,
separando-se, passavam o pão por todas as mesas. Era dito, e eu
lhes digo também, mas sob seu juramento, não sob o meu - se eu os
decepciono, todos nós somos mentirosos - que o que quer que seja
que se procurou, encontrou pronto, em frente ao cálice, alimento
quente ou alimento frio, pratos novos e velhos, carne doméstica ou
caça. "Não houve jamais algo como isto", dirão muitos. Mas eles
estarão errados em seu furioso protesto, pois o cálice era o fruto da
bênção, tal abundância da doçura do mundo que seus deleites eram
muito parecidos com o que conhecemos por reino do Céu.
Tudo isto é bastante mundano, mesmo simplório. O cálice parecia um
assunto inócuo. Mas, mais tarde, quando o tio ermitão de Parsifal fala
sobre o cálice, ele se torna decididamente mais poderoso. Após longa
explanação, que inclui trechos de pensamentos
flagrantemente gnósticos, o ermitão descreve o cálice do seguinte
modo:
Eu bem sei que muitos bravos cavaleiros lidam com o cálice em
Munsalvaeche. Sempre que cavalgam pelo mundo, como
freqüentemente o fazem, é para procurar aventuras. Eles o fazem por
causa do seu destino, esses templários, seja seu prêmio a vitória ou a
derrota. Um valente anfitrião ali mora, e eu lhe direi como eles são
amparados. Eles vivem de uma pedra da mais pura espécie. Se você
não a conhece, ela deverá aqui ser nomeada para você. É chamada
lapsi exillis. Pelo poder desta pedra, Fênix queima até cinzas, mas as
cinzas lhe devolvem a vida. Então, Fênix se metamorfoseia e muda
sua plumagem, que é depois intensa e luminosa e tão adorável como
antes. Nunca houve um humano tão enfermo que, ao ver um dia essa
pedra, não tenha vivido pelo menos mais uma semana.
E em aparência ele não fenecerá. Sua aparência permanecerá a
mesma, seja ele homem ou donzela, como no dia em que viu a pedra,
a mesma de quando os melhores anos de sua vida começaram, e
embora ele veja a pedra por duzentos anos, ele nunca mudará, exceto
por seus cabelos que poderão embranquecer. Tal poder dá a pedra a
um homem que carne e ossos se tornam jovens de novo. A pedra é
também chamada cálice.
Então, de acordo com Wolfram, o cálice é uma pedra de algum tipo.
Mas tal definição do cálice é mais provocante do que satisfatória.
Intelectuais têm sugerido várias interpretações para a frase "lapsis
exillis", todas mais ou menos plausíveis. A expressão pode ser uma
corruptela de lapis ex caelis, "pedra dos céus"; pode também ser uma
corruptela de lapsit ex caelis, "ela caiu dos céus", ou de lais elixir, a
fabulosa pedra fIlosofal da alquimia. A passagem citada, assim como
o poema completo de Wolfram a este respeito, é certamente
carregada de simbolismos da alquimia. Fênix, por exemplo, é a
abreviação da alquimia para ressurreição e renascimento - e também,
na iconografia medieval, um emblema de Jesus morrendo e
ressuscitando.
Se a Fênix é, de algum modo, uma representação de Jesus, Wolfram
o associa implicitamente a uma pedra. Tal associação não é única. Há
também Pedro (Pierre, ou "pedra" em francês), a "pedra" ou "rocha"
sobre a qual Jesus estabeleceu sua Igreja. No Novo Testamento,
Jesus relaciona a si mesmo, explicitamente, com "a pedra-chave
negligenciada pelos construtores", a pedra-chave do Templo, a rocha
do Sinai. Havia uma tradição real supostamente descendente de
Godfroi de Bouillon que, por ter sido "fundada" sobre esta rocha, era
igual às dinastias reinantes da Europa.
Na passagem que se segue imediatamente àquela já citada, Wolfram
associa o cálice especifIcamente à crucifIcação - e, através
do símbolo da pomba, a Madalena:
Neste exato dia, chega a ele [o cálice] uma mensagem na qual reside
seu maior poder. Hoje é sexta-feira santa, e eles esperam lá uma
pomba, voando do céu. Ela traz um pequeno biscoito e o deixa sobre
a pedra. Então, com seu branco fulgurante, a pomba sobe novamente
ao céu. Sempre na sexta-feira santa ela traz à pedra o que eu acabo
de lhe dizer, e daquilo a pedra deriva quaisquer boas fragrâncias de
bebida e comida na Terra, como à perfeição no paraíso. Eu quero
dizer todas as coisas que a terra pode dar. E além disso a pedra provê
tudo que vive sob os céus, seja tudo o que voa, corre ou nada. Assim,
à irmandade dos cavaleiros o poder do cálice dá suporte.
Adicionalmente a estes extraordinários atributos, o cálice, no poema
de Wolfram, possuiria quase que uma certa percepção. Teria a
capacidade de chamar pessoas ao seu serviço, de forma ativa:
Ouça agora como aqueles chamados ao cálice se tornam conhecidos.
Sobre a pedra, ao redor da borda, aparecem letras inscritas, dando o
nome e a linhagem de cada um, donzela ou rapaz, que empreenderá
esta abençoada jornada. Ninguém precisa apagar a inscrição, pois
uma vez que ele leia o nome, este desaparece diante de seus olhos.
Todos os que hoje atingiram a maioridade chegaram lá como crianças.
Abençoada é a mãe que gera uma criança destinada a lá prestar
serviço. Pobre e rico são regozijados se seu filho é chamado a reunirse
à companhia. Eles são lá levados de muitos lugares. Da
pecaminosa vergonha eles são mais protegidos que outros, e recebem
boa recompensa no céu. Quando a vida morre para eles aqui, a eles é
dada a perfeição lá.
Os guardiães do cálice são templários, mas os seus detentores
parecem integrar uma família dotada de numerosos ramos colaterais,
alguns dos quais espalhados pelo mundo, freqüentemente
desconhecendo a própria identidade. Outros membros da família
habitam o castelo do cálice de Munsalvaesche, obviamente associado
ao lendário castelo cátaro de Monsalvat, que pelo menos um escritor
identificou como sendo Montségur. Em Munsalvaesche vivem várias
figuras enigmáticas. Existe o verdadeiro guardião e beneficiário,
Repanse de Schoye ("Réponse de Choix", ou "Resposta escolhida"). E
existe, é claro, Anfortas, o rei pescador e senhor do castelo do cálice,
ferido nos genitais e incapaz de procriar ou, alternativamente, de
morrer. Assim como no romance sobre o cálice de Chrétien, Anfortas,
para Wolfram, é o tio de Parsifal. E quando, no final do poema, a
maldição é desfeita e Anfortas pode finalmente morrer, Parsifal se
torna o herdeiro do castelo do cálice.
O cálice, ou a família do cálice, serve-se de algumas pessoas, que
devem ser iniciadas em algum tipo de mistério. Ao mesmo tempo,
envia seus treinados servidores ao mundo exterior com a missão de
realizar ações em seu nome - e algumas vezes ocupar um trono. Pois
o cálice, aparentemente, possui o poder de criar reis:
Donzelas são nomeadas para cuidar do cálice (...) este era o
mandamento de Deus, e estas donzelas realizavam seu serviço ao pé
do cálice. O cálice só seleciona companhia nobre. Cavaleiros, devotos
e bons, são escolhidos para guardá-lo. A chegada das altas estrelas
traz a este povo grande tristeza, jovens e velhos igualmente. A ira de
Deus contra eles tem durado muito tempo. Quando dirão eles sim à
felicidade? (...) Eu lhe direi mais uma coisa, em cuja veracidade você
pode crer. Uma chance dupla é sempre deles; eles tanto dão quanto
recebem beneficio. Ele recebem lá jovens crianças, de nobre linhagem
e belas. E se em algum lugar um território perde seu senhor, se o
povo lá reconhece a mão de Deus e busca um novo senhor, ele é
presenteado com um da companhia do cálice. Eles devem tratá-lo
com cortesia, pois a bênção de Deus o protege.
De acordo com a passagem acima, parece que em algum momento
no passado a família do cálice incorreu na ira de Deus. A alusão a "ira
de Deus contra eles" ecoa muitas afirmações medievais sobre os
judeus. Também ecoa o título de um livro misterioso associado com
Nicolas Flanel - O Livro Sagrado de Abraão o judeu, príncipe, padre,
levita, astrólogo e filósofo daquela tribo de judeus que pela ira de Deus
foram dispersos entre os gauleses. E Flegetanis, que segundo
Wolfram escreveu - a narrativa original sobre o cálice, seria
descendente de Salomão. Seria a família do cálice de origem judaica?
Qualquer que tenha sido a maldição antes lançada sobre a família do
cálice, ela indubitavelmente veio a gozar, na época de Parsifal, de
proteção divina e de grande parcela de poder. Entretanto, ela se
empenha em manter sua identidade rigorosamente em segredo, pelo
menos em certos aspectos.
Os homens [da família do cálice], Deus envia secretamente; as
donzelas partem abertamente (...). Assim as donzelas são enviadas
abertamente, e os homens em segredo, que eles podem ter filhos que
irão, por sua vez, entrar um dia para o serviço do cálice, e, servindo,
estimular sua companhia. Deus pode ensiná-los como fazê-lo.
As mulheres da família do cálice podem, portanto, revelar sua
genealogia e identidade quando se casam com pessoas do mundo
exterior. Os homens, contudo, devem manter esta informação oculta -
tanto que, na verdade, eles não podem permitir perguntas sobre suas
origens. O ponto, parece, é crucial, pois Wolfram retorna a ele,
enfaticamente, no final do poema.
Sobre o cálice encontra-se agora escrito que todo templário a quem a
mão de Deus apontou como mestre deve proibir que pessoas do
exterior façam perguntas sobre seu nome ou raça, e que ele deve
ajudá-las com seus direitos. Se perguntas forem feitas sobre ele, elas
não mais devem receber ajuda.
Daí deriva, é claro, o dilema de Lohengrin, o filho de Parsifal que, ao
ser inquirido sobre sua origem, deve abandonar sua esposa e filhos e
partir para o lugar de onde veio. Mas por que tão sigilosa conduta
seria necessária? Que tipo de coisas a esconder poderiam ditá-la?
Considerando a época em que Wolfram escreveu, se a família do
cálice era de fato de origem judaica, isto poderia constituir uma
explicação. E tal explicação ganha alguma credibilidade com a história
de Lohengrin. Pois existem muitas variantes dessa história, e
Lohengrin não é sempre identificado pelo mesmo nome. Em algumas
versões ele é chamado Helios, significando sol. Em outras versões é
chamado Elie ou Eli, um nome evidentemente judeu.
No romance de Boron e em Perlesvaus, Parsifal é de linhagem judaica
- a "linhagem sagrada" de José de Arimatéia. No poema de Wolfram
esta posição, no que concerne a Parsifal, parece incidental.
Realmente, Parsifal é o sobrinho do rei pescador ferido, sendo
portanto relacionado ao sangue da família do cálice. Embora ele não
se case com alguém da família do cálice - na realidade, já é casado -,
ainda assim herda o castelo do cálice e se torna o seu novo senhor.
Mas para Wolfram a genealogia do protagonista parece menos
importante do que os meios pelos quais ele se mostra merecedor
disto. Em suma, ele deve sujeitar-se a certos critérios ditados pelo
sangue que carrega nas veias. Esta ênfase parece indicar a
importância que Wolfram atribui àquele sangue.
Não há dúvida de que Wolfram atribui grande importância a uma
linhagem sanguínea particular. Se existe um único tema dominante
permeando não só Parzival, mas também os seus outros trabalhos,
ele é a família do cálice, mais que o próprio cálice. A família do cálice
parece dominar a mente de Wolfram de um modo quase obsessivo, e
ele dedica muito mais atenção a ela do que ao misterioso objeto do
qual eles são guardiães.
A genealogia da família do cálice pode ser reconstruída a partir de
uma leitura atenta de Parzival. O próprio Parsifal é um sobrinho de
Anfortas, o rei pescador ferido e senhor do castelo do cálice. Anfortas,
por sua vez, é filho de Frimutel, e Frimutel é filho de Titurel. Nesse
ponto a linhagem se torna mais enovelada. Mas retrocede finalmente
até um certo Laziliez, que pode ser uma derivação de Lazarus, o
irmão de Maria e de Martha no Novo Testamento. E os pais de
Laziliez, os progenitores originais da família do cálice, são chamados
Mazadan e Terdelaschoye. Este último é obviamente uma versão
germânica da expressão francesa terre de la choix, ou terra escolhida.
Mazadan é mais obscuro. Ele pode derivar do Ahura Mazda
zoroastriano, o principio dualista da luz. Ao mesmo tempo, pode
sugerir, ainda que apenas foneticamente, Masada, um bastião
importante durante a revolta judia contra a ocupação romana em 68
d.C.
Os nomes que Wolfram atribui aos membros da família do cálice são
portanto mais provocantes e sugestivos. Contudo, nada de útil nos
dizem, do ponto de vista histórico. Se quiséssemos encontrar um
fundador histórico da família do cálice, teríamos que procurar em outra
fonte. As pistas eram fracas. Sabíamos, por exemplo, que a família
tinha supostamente culminado em Godfroi de Bouillon; mas isto
não lançava muita luz sobre os antecedentes míticos de Godfroi - com
exceção, é claro, do fato de que ele (como seus antecedentes reais)
mantinha sua identidade escrupulosamente em segredo. Mas segundo
Wolfram, Kiot encontrou uma narrativa da história do cálice nos anais
da casa de Anjou, e o próprio Parsifal teria sangue de Angevin. Isto
era extremamente interessante, pois a casa de Anjou era
estreitamente associada tanto com os templários quanto com a Terra
Santa. Realmente, Fulques, conde de Anjou, tornou-se, por assim
dizer, um templário honorário, ou de tempo parcial. Em 1131, ele se
casou com a sobrinha de Godfroi de Bouillon, a lendária Melusine, e
se tornou rei de Jerusalém. Segundo os Documentos do Monastério,
os lordes de Anjou - a família Plantagenet - se aliaram assim à
linhagem merovíngia. E o nome de Plantagenet pode ter ecoado
Plant-Ard ou Plantard.
Tais conexões são fragmentadas e tênues. Mas obtivemos pistas
adicionais através da localização geográfica do poema de Wolfram,
situado em sua maior parte na França. Contrariamente a cronistas
posteriores, Wolfram afirma que a corte de Arthur, Camelot, se situava
na França, especificamente em Nantes, na região da atual Bretanha
francesa. Ali estava a fronteira oeste do antigo domínio merovíngio no
ápice de seu poder.
Em um manuscrito da versão de Chrétien sobre a história do cálice,
Parsifal declara ter nascido em Scaudone, ou Sinadon, ou algum lugar
semelhante que aparece em diversas variantes ortográficas. A região
é descrita como montanhosa. Segundo Wolfram, Parsifal vem de
Waleis, que a maioria dos estudiosos tomou como sendo Wales (País
de Gales). Sinadon, em suas várias grafias, foi considerado como
sendo Snowdon, ou Snowdonia. Neste caso, contudo, surgem alguns
problemas intransponíveis. Como observa um comentarista moderno,
"os mapas erram", pois personagens se movem constantemente entre
Waleis e a corte de Arthur em Nantes, assim como para outras
localidades francesas, sem cruzar qualquer água! Em suma, eles se
movem em escala transcontinental, e através de regiões cujos
habitantes falam francês. Seria a geografia de Wolfram simplesmente
confusa? Poderia ser apenas negligência?Ou Waleis não é País de
Gales? Dois estudiosos sugeriram que pode ser Valois, a região da
França a noroeste de Paris. Mas não existem montanhas em Valois, e
o resto da paisagem não condiz com a descrição de Wolfram. Ao
mesmo tempo, existe uma outra possibilidade de localização para
Waleis - uma localização que é montanhosa, que condiz precisamente
com as descrições topográficas de Wolfram e cujos habitantes falam
francês. Trata-se de Valais, na Suíça, às margens do lago Léman, a
leste de Genebra. Em suma, parece que a terra natal de Parsifal não é
o País de Gales nem Valois, mas Valais. E seu verdadeiro local de
nascimento, Sinadon, não seria Snowdon ou Snowdonia, mas
Sidonensis, a capital de Valais. E o nome moderno de Sidonensis,
capital de Valais, é Sion.
Assim, segundo Wolfram, a corte de Arthur fica na Bretanha francesa.
Parsifal teria nascido na Suíça. E a família do cálice? E o castelo do
cálice? Wolfram fornece uma resposta em seu mais ambicioso
trabalho, deixado incompleto com sua morte, e intitulado Der Junge
Titurel. Neste fragmento evocativo, Wolfram se refere à vida de Titurel,
pai de Anfortas e construtor original do castelo do cálice. Der Junge
Titurel é muito especifico, não somente quanto a detalhes genealógios
como também quanto às dimensões, os componentes, os materiais e
a configuração do castelo do cálice - sua capela circular, por exemplo,
como aquelas dos templários. E o próprio castelo é situado nos
Pirineus.
Além de Der Junge Titurel, Wolfram deixou outro trabalho incompleto
ao morrer: o poema conhecido como Willehalm, cujo protagonista é
Guillem de Gellone, governante merovíngio do principado existente
nos Pirineus no século IX. Guillem seria associado à família do cálice.
Assim, seria ele o único personagem nos trabalhos de Wolfram cuja
identidade histórica pode ser realmente determinada. Mas a
meticulosa precisão de Wolfram é surpreendente, mesmo no
tratamento que dá aos personagens não identificados. Quanto mais se
estudam seus trabalhos, mais provável parece que eles se referem a
um grupo real de pessoas - não uma família mítica ou fictícia, mas
uma que existiu historicamente, e que pode bem ter incluído Guillem
de Gellone. Esta conclusão se torna ainda mais plausível quando
Wolfram admite estar ocultando algo. Parsival e seus outros trabalhos
não são meros romances, mas documentos de iniciação, depositários
de segredos.
O Cálice e a Cabala
Como sugere Perlesvaus, o cálice, pelo menos em parte, parece ser
uma experiência de algum tipo. Em sua digressão sobre as
propriedades curativas do cálice e seus poderes de assegurar
longevidade, Wolfram parecia estar insinuando algo experimental e
também simbólico - um estado de espírito, ou estado de alma. Existem
poucas dúvidas de que, em um certo nível, o cálice é uma experiência
de iniciação que na terminologia moderna seria descrita como
transformação, ou estado alterado da consciência. Alternativamente,
ela pode ser descrita como uma experiência gnóstica, mística, uma
iluminação ou união com Deus. É possível colocar o aspecto
experimental do cálice em um contexto especifico, o da cabala e do
pensamento cabalístico. Tal pensamento estava na moda quando
surgiram os romances sobre o cálice. Havia uma famosa escola de
cabala em Toledo, onde Kiot teria ouvido falar no cálice. Outras
escolas existiam no sul da França. E não seria por pura coincidência
que Troyes também teria uma escola, datada de 1070 - época de
Godfroi de Bouillon - e dirigida por um certo Rashi, talvez o mais
famoso cabalista medieval.
É certamente impossível fazer justiça, aqui, à cabala ou ao
pensamento cabalístico. Todavia, alguns pontos podem ser
mencionados no sentido de estabelecer a conexão entre a cabala e os
romances sobre o cálice. Muito resumidamente, a cabala pode ser
descrita como judaísmo esotérico, uma metodologia psicológica de
origem unicamente judaica, destinada a induzir uma transformação
drástica da consciência. Nesse sentido, ela pode ser vista como um
equivalente judeu de metodologias ou disciplinas similares nas
tradições hindu, budista e taoísta - algumas formas de ioga, por
exemplo, ou de zen.
Da mesma forma que seus equivalentes orientais, o treinamento em
cabala envolve uma série de rituais, uma seqüência estrutural de
experiências de iniciação que levam o praticante a modificações
sempre mais radicais da consciência e da capacidade cognitiva.
Embora o significado e a importância de tais modificações sejam
sujeitos a interpretação, sua realidade, como fenômeno psicológico, é
indiscutível. Entre os estágios de iniciação cabalística, um dos mais
importantes é o conhecido como Tiferet. Dizem que na experiência
Tiferet a pessoa passa para o além do mundo da forma, ou, em
termos contemporâneos, transcende o próprio ego. Simbolicamente
falando, isto consiste em uma espécie de morte sacrificial, a morte do
ego, do senso de individualidade e do isolamento implícito em tal
individualidade; e, certamente, um renascimento, ou ressurreição, em
outra dimensão, de harmonia e unidade totais. Na adaptação cristã da
cabala, Tiferet foi associado a Jesus.
Para os cabalistas medievais, a iniciação no Tiferet era associada a
alguns símbolos específicos, que incluíam um ermitão, ou guia, ou
velho sábio, um rei majestoso, uma criança, um deus sacrificado. Com
o tempo, outros símbolos - uma pirâmide truncada, um cubo e a
rosacruz - foram adicionados. A relação entre estes símbolos e os
romances sobre o cálice é clara. Em toda narrativa sobre o cálice
existe um velho ermitão sábio - freqüentemente, o tio de Perceval ou
Parsifal - que age como guia espiritual. No poema de Wolfram, o
cálice, como pedra, pode corresponder ao cubo. E em Perlesvaus as
várias manifestações do cálice correspondem quase precisamente aos
símbolos do Tiferet. O próprio Perlesvaus estabelece um laço crucial
entre a experiência Tiferet e o cálice.
O Jogo de Palavras
Pudemos identificar assim o aspecto vivencial do cálice e conectá-lo
de forma razoavelmente precisa com a cabala. Isto envolveu outro
elemento judaico, fato aparentemente paradoxal, tendo em vista o
caráter supostamente cristão do cálice. Além disso, quaisquer que
fossem os aspectos experimentais do cálice, havia outros aspectos de
grande importância para nossa história, que não podíamos ignorar.
Eram aspectos históricos e genealógicos.
Os romances sobre o cálice nos tinham confrontado com um padrão
reiterado de natureza mundana, não mística. Reiteradamente, havia
um cavaleiro pueril que, por meio de alguns testes que o revelavam
merecedor, era iniciado em algum segredo monumental, guardado
com zelo por uma ordem de algum tipo, aparentemente cavaleiresca
em sua composição. O segredo era associado de alguma forma a uma
família específica. Por meio de casamento com tal família, por meio de
sua própria linhagem ou por meio de ambos, o protagonista tornava-se
senhor do cálice e de tudo que fosse relacionado com ele. Pelo menos
nesse nível parecíamos estar lidando com algo de caráter histórico
concreto. Alguém pode tornar-se senhor de um castelo ou de um
grupo de pessoas. Pode tornar-se herdeiro de certos territórios ou até
mesmo de um certo legado. Mas ninguém pode tornar-se senhor, ou
herdeiro, de uma experiência.
Quando submetidos a análise cuidadosa, os romances sobre o cálice
se revelavam crucialmente baseados em assuntos de linhagem e
genealogia, herança e hereditariedade. Nós nos perguntamos se isso
seria relevante. Enfim, haveria alguma importância no fato de a
linhagem em questão imbricar, em certos pontos-chaves, com aquela
que aparecia de forma tão saliente em nossa investigação - a casa de
Anjou, por exemplo, Guillem de Gellone e Godfroi de Bouillon?
Poderia o mistério ligado a Rennes-Ie-Château e ao Monastério do
Sinai estar relacionado de algum modo, ainda obscuro, ao misterioso
objeto chamado cálice sagrado? Estaríamos, na realidade, seguindo
os passos de Parsifal e conduzindo a nossa própria moderna busca do
cálice?
As evidências sugeriam que esta era uma possibilidade real. Uma
delas pesou decisivamente em favor de tal conclusão. Em muitos dos
mais antigos manuscritos, o cálice é chamado sangraal; e até mesmo
na última versão de Malory ele é chamado sangreal. É provável que
uma destas formas - sangraal ou sangreal - seja de fato a original.
Também é provável que posteriormente esta palavra tenha sido
quebrada no lugar errado. Sangraal ou sangreal talvez não devessem
dividir-se em san graal ou san greal - mas em sang raal ou sang real.
Ou, para empregar a grafia moderna, "sangue real".
Este jogo de palavras pode ser provocante, mas não é, por si só,
conclusivo. Tomado em conjunto com a ênfase dada a genealogia e
linhagem, contudo, ele não deixa muita margem a dúvida. A este
respeito, as associações tradicionais - o copo que colheu o sangue de
Jesus, por exemplo - parecem reforçar esta suposição. O cálice
parece relacionado de algum modo a sangue e a linhagem, o que,
obviamente, levanta algumas perguntas. Qual sangue? Qual
linhagem?
Os Reis Perdidos e o Cálice
Os romances sobre o cálice não foram os únicos poemas do tipo a
encontrar uma audiência receptiva no final do século XII e início do
século XIII. Houve muitos outros - Tristan e lsolde, por exemplo, e Eric
e Enide - compostos pelo próprio Chrétien ou por contemporâneos e
compatriotas de Wolfram, como Hartmann Von Aue e Gottfried Von
Strassburg. Estes romances não mencionam o cálice, mas são
claramente situados no mesmo período mÍtico-histórico dos romances
sobre o cálice, apoiando-se mais ou menos intensamente em Arthur.
Até onde pode ser datado, Arthur parece ter vivido no final do século V
e/ou início do século VI, no ápice da ascendência merovíngia na Gália.
Foi, sem dúvida, contemporâneo de Clóvis. Se o termo Ursus era
aplicado à linhagem real merovíngia, o nome Arthur, que também
significa urso, pode ser uma tentativa de conferir a um chefe britânico
uma dignidade comparável.
Para os escritores da época das Cruzadas, a era merovíngia parece
ter sido de importância crucial - tanto que ela forneceu o pano de
fundo de romances que não tinham nada a ver com Arthur ou o cálice.
Um desses romances é o épico nacional da Alemanha, Nibelungenlied
ou Canção dos Nibelungen, no qual Wagner se inspirou para escrever
sua monumental seqüência operística O Anel. Este opus musical e o
poema do qual foi derivado são geralmente considerados pura
fantasia. Mas os nibelungos foram um povo real, uma tribo germânica
que viveu no final da época merovíngia. Além disso, muitos dos
nomes em Nibelungenlied - Siegmund, por exemplo, Siegfried,
Sieglinde, Brünhilde e Kriemhild - são claramente merovíngios. Muitos
episódios no poema ocorrem em paralelo com eventos dos tempos
merovíngios e até se referem a eles.
Embora não tenha nada a ver com Arthur ou com o cálice, o
Nibelungenlied é mais uma evidência de que a época merovíngia
exerceu influência poderosa sobre a imaginação dos poetas dos
séculos XII e XIII - como se eles soubessem de alguma coisa crucial
sobre essa época que escritores e historiadores posteriores não
souberam. Em todo caso, os intelectuais modernos concordam em
que os romances sobre o cálice, assim como o Nibelungenlied, se
referem à época merovíngia. É claro que, dada a importância de
Arthur, esta conclusão pareceria óbvia, pelo menos em parte. Mas ela
repousa também em indicações específicas dadas pelos próprios
romances sobre o cálice. O Qyeste del saint graal, por exemplo,
escrito entre 1215 e 1230, declara explicitamente que os eventos da
história do cálice ocorreram precisamente 454 anos após a
ressurreição de Jesus. Assumindo que Jesus tenha morrido em 33
d.C., a saga do cálice teria acontecido em 487 d.C. - durante o
primeiro sopro de poder merovíngio, e apenas nove anos após o
batismo de Clóvis.
Não havia nada de controvertido ou de revolucionário em relacionar os
romances sobre o cálice e a era merovíngia. Apesar disto, sentimos
que alguma coisa tinha passado despercebida. Essencialmente,
tratava-se de uma questão de ênfase - que, por causa de Arthur, foi
colocada na Inglaterra. Como resultado desta ênfase claramente
britânica, não associamos logo o cálice e a dinastia merovíngia. Mas
Wolfram insiste em que a corte de Arthur era em Nantes e que seu
poema se passa na França. A mesma afirmação é feita para outros
romances sobre o cálice - o Qyeste del saint graal, por exemplo. E
existem tradições medievais que confirmam que o cálice não foi
levado para a Inglaterra por José de Arimatéia, mas para a França.
Por Madalena.
Começamos a imaginar que a predominância da Inglaterra nos relatos
de comentaristas dos romances sobre o cálice podia estar mal
colocada. Na realidade, os romances se referiam a eventos ocorridos
no continente, mais especificamente na França. E começamos a
suspeitar que o próprio cálice, o sangue real, se referia na realidade
ao sangue real da dinastia merovíngia, um sangue que era
considerado sagrado e possuidor de propriedades mágicas e
miraculosas.
Talvez os romances sobre o cálice tenham constituído, pelo menos
em parte, uma narrativa simbólica e alegórica de eventos da época
merovíngia. E talvez já tivéssemos encontrado alguns desses eventos
ao longo da nossa investigação. Um casamento em uma família
especial, por exemplo, que, encoberto pelo tempo, engendrou as
legendas sobre a dupla paternidade de Mérovée. Ou talvez, na família
do cálice, uma representação da perpetuação clandestina da linhagem
merovíngia - les rois perdus, ou "reis perdidos" - nas montanhas e
cavernas de Razès. Ou talvez o exílio daquela linhagem na Inglaterra
durante o século IX e o início do século X. E as alianças dinásticas
secretas, mas augustas, pelas quais a vinha merovíngia, assim como
aquela da família do cálice, finalmente frutificou em Godfroi de
Bouillon e na casa Lorraine. Talvez o próprio Arthur - o "urso" - tenha
sido incidentalmente relacionado com o líder celta ou gaulês-romano.
Talvez o Arthur dos romances sobre o cálice seja na realidade
"Ursus". Talvez o lendário Arthur das crônicas de Geoffrey de
Monmouth tenha sido apropriado pelos escritores do cálice e
deliberadamente transformado no veículo de uma tradição bem
diferente e secreta. Se este for o caso, se explicaria por que os
templários - criados pelo Monastério do Sinai como guardiães da
linhagem merovíngia - foram declarados guardiães do cálice e da
família do cálice. Se a família do cálice e a linhagem merovíngia são a
mesma coisa, os templários foram realmente guardiães do cálice,
mais ou menos na época em que os romances sobre o cálice foram
escritos. Assim, sua presença nos romances sobre o cálice não seria
anacrônica.
A hipótese era intrigante, mas levantava uma pergunta crucial. Os
romances podem ter se passado no tempo dos merovíngios, mas eles
ligam o cálice, de forma bastante explícita, às origens da cristandade,
a Jesus, a José de Arimatéia, a Madalena. Alguns vão além. No
poema de Robert de Boron, Galahad seria o filho de José de
Arimatéia, embora a identidade da mãe do cavaleiro seja obscura. E
no Quest del saint graal, Galahad é chamado herdeiro da casa de
Davi, sendo identificado como o próprio Jesus. Realmente, o nome
Galahad, segundo os intelectuais modernos, deriva do nome Gilead,
que foi considerado uma designação mística para Jesus.
Se o cálice podia ser identificado com a linhagem merovíngia, qual
seria sua conexão com Jesus? Por que algo tão intimamente
associado a Jesus poderia também ser associado com a época
merovíngia? Como poderíamos reconciliar a discrepância cronológica,
estabelecendo uma relação entre algo tão pertinente a Jesus e
eventos que ocorreram pelo menos quatro séculos depois? Como
poderia o cálice se referir, por um lado, à época merovíngia e, por
outro, a alguma coisa levada por José de Arimatéia à Inglaterra ou por
Madalena à França?
Tais perguntas se impunham até mesmo num nível simbólico. O
cálice, por exemplo, se relacionava de algum modo a sangue. Mesmo
sem desdobrar sangraal em sang raal, o cálice teria sido o receptáculo
do sangue de Jesus. Como poderia haver relação com os
merovíngios? E por que deveriam estas duas coisas ser relacionadas
precisamente na época em que o foram, durante as Cruzadas, quando
as cabeças merovíngias usavam a coroa do reino de Jerusalém,
protegida pela Ordem do Templo e o Monastério do Sinai?
Os romances sobre o cálice enfatizam a importância do sangue de
Jesus. Também enfatizam uma linhagem de algum tipo. Levando em
conta fatores como a família do cálice desembocando em Godfroi de
Bouillon, parece que a referência é ao sangue merovíngio. Seria
possível haver alguma conexão entre estes dois elementos
aparentemente discordantes? Poderia o sangue de Jesus ser
relacionado de algum modo ao sangue real dos merovíngios? Poderia
a linhagem relacionada com o cálice, levado à Europa ocidental logo
após a crucificação, ser interligada com a linhagem dos merovíngios?
A Necessidade de Síntese
Nesse ponto fizemos uma pausa para revisar as evidências de que
dispúnhamos. Elas nos estavam levando para uma direção clara,
porém inesperada. Por que estas evidências - disponíveis durante
séculos ainda não tinham chamado a atenção de outros estudiosos?
Por que ninguém, até onde soubemos, jamais as sintetizara e tirara as
conclusões que pareciam bastante óbvias, ainda que especulativas?
Tais conclusões, alguns séculos atrás, teriam sido rigoroso tabu,
sendo severamente punidas, se publicadas. Mas não tem havido
muito risco durante, pelo menos, os dois últimos séculos. Por que,
então, os fragmentos desse quebra-cabeça não foram reunidos em
um todo coerente?
Percebemos que as respostas a estas perguntas estavam em nossa
própria época, ou melhor, nos modos ou hábitos de pensar que a
caracterizam. Desde o chamado Iluminismo do século XVIII, a
orientação da cultura e da consciência ocidental tem sido para a
análise, mais do que para a síntese. Nossa época é caracterizada por
uma sempre crescente especialização. A intelectualidade enfatiza
exageradamente a especialização, que, como atesta a universidade
moderna, implica a segregação do conhecimento em disciplinas
distintas. Como conseqüência, as diversas esferas cobertas por nossa
investigação têm sido tradicionalmente segmentadas em
compartimentos bem separados. Em cada compartimento o material
relevante tem sido devidamente explorado e avaliado por
especialistas. Mas poucos destes especialistas, ou nenhum deles, têm
se aventurado a estabelecer uma conexão entre sua área particular e
outras que podem superpor-se a ela. Realmente, tais especialistas
tendem a considerar com considerável desconfiança - espúrias no pior
dos casos, irrelevantes no melhor - as áreas diferentes das suas. A
pesquisa eclética, interdisciplinar, é freqüentemente desencorajada
como sendo, entre outras coisas, especulativa demais.
Muitos tratados têm surgido a respeito dos romances sobre o cálice,
suas origens e seu desenvolvimento, seu impacto cultural, sua
qualidade literária. E numerosos estudos, válidos ou não, têm sido
feitos sobre os templários e as Cruzadas. Mas poucos especialistas
nos romances sobre o cálice têm sido historiadores, e menos ainda
têm demonstrado qualquer interesse na complexa, freqüentemente
sórdida e não muito romântica história por trás dos templários e das
Cruzadas. Do mesmo modo, historiadores dos templários e das
Cruzadas têm, como todos os historiadores, aderido estreitamente a
registros de fatos e documentos. Os romances sobre o cálice têm sido
desprezados como mera ficção, como nada mais que um fenômeno
cultural, uma espécie de produto secundário gerado pela imaginação
da época. Sugerir a tal tipo de historiador que os romances sobre o
cálice podem conter um núcleo de verdade histórica seria equivalente
a uma heresia - embora Schlieman, há mais de um século, tenha
descoberto o local de Tróia através de uma leitura cuidadosa de
Homero.
É verdade que vários escritores ligados ao oculto, ao procederem
primariamente com base no pensamento positivo, têm dado crédito
literal a lendas, afirmando que, de algum modo místico, os templários
eram guardiães do cálice - o que quer que pudesse ser o cálice. Mas
não tem havido nenhum estudo histórico sério que se aventure a
estabelecer qualquer conexão verdadeira. Os templários são
considerados como fato, o cálice como ficção, e nenhuma associação
entre os dois é considerada possível. E se os romances sobre o cálice
têm sido negligenciados pelos intelectuais e historiadores do período
no qual eles foram escritos, não é de se surpreender que eles tenham
sido negligenciados por especialistas de épocas anteriores.
Simplesmente, não ocorreria a um especialista na época merovíngia
suspeitar que os romances sobre o cálice - se é que ele conhece
algum - possam lançar alguma luz em sua área de estudo. Nenhum
dos especialistas em merovíngios que encontramos sequer menciona
as lendas de Arthur. Isto não configura uma omissão séria? Tanto
mais que, cronologicamente falando, estas lendas se referem à época
exata pesquisada por eles.
Se os historiadores estão despreparados para traçar esse tipo de
conexões, os intelectuais especialistas em Bíblia estão ainda menos.
Durante as últimas décadas, uma porção de livros apareceram -
segundo os quais Jesus era um pacifista, um essênio, um místico,
um budista, um feiticeiro, um revolucionário, um homossexual, até
mesmo um cogumelo. Mas apesar dessa massa de material sobre
Jesus e o contexto histórico do Novo Testamento, nenhum autor, até
onde sabemos, tocou na questão do cálice. Por que deveria? Por que
um especialista em história bíblica teria interesse - ou mesmo
conheceria - em um punhado de poemas românticos fantásticos,
compostos na Europa ocidental mais de mil anos depois? Seria
inconcebível que os romances sobre o cálice pudessem de algum
modo elucidar mistérios do Novo Testamento.
Mas realidade, história e conhecimento não podem ser segmentados e
compartimentalizados de acordo com o sistema de classificação
arbitrário do intelecto humano. Evidências documentadas podem ter
dificuldades para sobreviver, mas é evidente que tradições podem
sobreviver por mil anos, emergindo então em forma escrita que
ilumina eventos precedentes. Algumas sagas irlandesas, por exemplo,
podem revelar muito sobre a transformação da sociedade matriarcal
em patriarcal na antiga Irlanda. Sem o trabalho de Homero, composto
muito depois do fato, ninguém teria ouvido falar do cerco de Tróia. E
Guerra e paz - embora escrito mais de meio século depois - pode
contar-nos mais do que a maioria dos livros de história, e mais ainda
do que a maioria dos documentos oficiais, sobre a Rússia durante a
era napoleônica.
O pesquisador responsável deve, como um detetive, perseguir todas
as pistas que encontra, por mais improváveis que pareçam. Não se
deve desprezar um material a priori, porque ele ameaça levar-nos a
território improvável ou desconhecido. Os eventos do escândalo
Watergate, por exemplo, foram reconstruídos inicialmente a partir de
uma infinidade de fragmentos disparatados, cada um insignificante em
si mesmo e sem conexão aparente com os demais. Para os
investigadores da época, alguns dos truques sujos, freqüentemente
infantis, devem ter parecido tão divorciados dos assuntos globais
como os romances sobre o cálice podem parecer em face do Novo
Testamento. E o escândalo Watergate foi confinado a um único país e
a um lapso de tempo de poucos anos. O assunto de nossa
investigação abrange toda a cultura ocidental e um lapso de tempo de
dois milênios.
É necessária uma abordagem interdisciplinar do material escolhido,
uma abordagem móvel e flexível, que nos permita migrar livremente
por entre disciplinas disparatadas e através do espaço e do tempo.
Devemos ser capazes de ligar dados e fazer conexões entre pessoas,
eventos e fenômenos amplamente divorciados um do outro. Devemos
ser capazes de mudar, se a necessidade ditar, do século III para o XII,
ou do século VII para o XVIII, desenhando um espectro variado de
fontes - antigos textos eclesiásticos, romances sobre o cálice,
registros e crônicas merovíngios, escritos da maçonaria. Em suma,
devemos sintetizar, pois somente pela síntese podemos discernir a
continuidade delineada, o tecido unificado e coerente, que repousam
no centro de um problema histórico. Tal abordagem, em princípio, não
é nem particularmente revolucionária, nem controvertida. Consiste
mais em tomar um princípio do dogma da Igreja contemporânea - a
Imaculada Conceição, por exemplo, ou o celibato obrigatório dos
padres - e usá-lo para iluminar a antiga cristandade. Da mesma
maneira, os romances sobre o cálice podem ser usados para lançar
alguma luz significativa sobre o Novo Testamento, sobre a trajetória e
a identidade de Jesus.
Finalmente, não é suficiente confinar-se exclusivamente aos fatos.
Devemos também discernir as repercussões e ramificações dos fatos
e ver como estas repercussões e ramificações irradiam através dos
séculos, freqüentemente na forma de mitos e lendas. É verdade que
os fatos podem ser distorcidos no processo, como um eco
reverberando entre penhascos. Mas se a voz em si pode ser
localizada, o eco, embora distorcido, pode ainda apontar o caminho.
Em suma, fatos são como pedregulhos lançados no lago da história.
Desaparecem logo, freqüentemente sem deixar traço. Mas geram
ondas. Se nossa perspectiva é ampla o bastante, elas nos permitem
marcar onde o pedregulho caiu. Guiados pela ondas, podemos então
mergulhar ou adotar outra abordagem. As ondas permitem localizar o
que de outra maneira pode ser irrecuperável.
Agora estava se tornando claro para nós que tudo o que tínhamos
estudado durante nossa investigação era nada mais que uma onda -
que, monitorada corretamente, poderia dirigir-nos até a pedra jogada
no lago da história, dois milênios atrás.
Nossa Hipótese
Madalena havia aparecido de forma proeminente em nossa
investigação. De acordo com algumas lendas medievais, ela levou o
cálice sagrado - ou "sangue real" - para a França. O cálice é
estreitamente associado a Jesus. E o cálice, pelo menos em certo
nível, se relaciona de alguma forma com sangue - ou, mais
especificamente, a uma estirpe ou linhagem sanguínea. Os romances
sobre o cálice, entretanto, são na sua maior parte situados na época
merovíngia. Mas eles só foram compostos depois que Godfroi de
Bouillon - herdeiro fictício da família do cálice e herdeiro verdadeiro
dos merovíngios - estava instalado, de fato mas não nominalmente,
como rei de Jerusalém.
Se estivéssemos lidando com alguém outro que não Jesus -
se estivéssemos lidando com um personagem como Alexandre,
por exemplo, ou Júlio César - estes pedaços fragmentados de
evidência levariam, quase inelutavelmente, a uma conclusão óbvia.
Nós tiramos aquela conclusão, por mais controvertida e explosiva que
pudesse ser. E começamos a testá-la, pelo menos como uma
hipótese.
Talvez Madalena - aquela mulher evasiva dos Evangelhos - fosse na
realidade a esposa de Jesus. Talvez sua união tenha produzido prole.
Após a crucificação, talvez Madalena, com pelo menos um filho, tenha
sido levada para a Gália, onde comunidades judias já existiam e onde,
portanto, ela poderia encontrar refúgio. Talvez houvesse, em suma,
uma linhagem sanguínea que descendesse diretamente de Jesus.
Talvez esta linhagem, este supremo sang real, tenha se perpetuado,
intacto e incógnito, por algumas centenas de anos - o que não é, na
realidade, um tempo muito longo para uma linhagem importante.
Talvez tenham havido casamentos dinásticos não só com outras
famílias judias, mas também com romanos e visigodos. E talvez, no
século V; a linhagem de Jesus tenha se aliado à linhagem real dos
francos, engendrando assim a dinastia merovíngia.
Se essa hipótese de trabalho fosse em algum sentido verdadeira, ela
serviria para explicar grande número de elementos em nossa
investigação. Explicaria a extraordinária posição de Madalena e a
importância do culto a ela dedicado durante as Cruzadas. Explicaria a
condição sagrada atribuída aos merovíngios. Explicaria o nascimento
legendário de Merovée, filho de dois pais, sendo um deles uma
criatura marinha simbólica que, como Jesus, podia ser comparado ao
peixe místico. Explicaria o pacto entre a Igreja Romana e a linhagem
sanguínea de Clóvis (um pacto com os descendentes de Jesus não
seria um pacto óbvio para uma Igreja fundada em seu nome?).
Explicaria a ênfase aparentemente incomensurável dada ao
assassinato de Dagobert lI, pois a Igreja, tomando partido nessa
morte, teria sido culpada não somente de um assassinato real mas,
segundo sua própria doutrina, de uma forma de assassinato de Deus.
Explicaria a tentativa de erradicar Dagobert da história. Explicaria a
obsessão dos carolíngios em legitimar-se, como chefes do Sacro
Império Romano, ao clamarem por uma genealogia merovíngia.
Uma linhagem descendente de Jesus através de Dagobert também
explicaria a família do cálice nos romances - o segredo que a envolve,
sua condição exaltada, o rei pescador incapaz de reinar, o processo
pelo qual Parsifal ou Perceval se torna herdeiro do castelo do cálice.
Finalmente, explicaria a genealogia mística de Godfroi de Bouillon,
filho ou neto de Lohengrin, neto ou bisneto de Parsifal, herdeiro da
família do cálice. E se Godfroi descendia de Jesus, sua triunfante
captura de Jerusalém, em 1099, teria envolvido muito mais do que a
retomada do Santo Sepulcro aos infiéis. Godfroi estaria reclamando o
direito à sua própria herança.
Nós já tínhamos adivinhado que as referências a vinicultura, que
apareciam durante nossa pesquisa, simbolizavam alianças dinásticas.
Com base em nossa hipótese, vinicultura agora parecia simbolizar o
processo pelo qual Jesus - que se identifica repetidamente com a
vinha - perpetuou sua linhagem. Como se numa confirmação disto,
descobrimos uma porta esculpida representando Jesus como uma
porção de uvas. Esta porta se encontra em Sion, na Suíça.
Nosso cenário hipotético era logicamente consistente e intrigante, mas
ainda era especulativo. Podia ser bastante atraente, mas ainda era
muito inacabado e repousava em bases muito frágeis. Embora
explicasse muitas coisas, ainda não podia ser sustentado. Havia
muitos buracos, inconsistências e anomalias, muitos fios soltos. Antes
de podermos considerá-lo seriamente, tínhamos que determinar se
havia evidências reais para ampará-lo. Numa tentativa de encontrar
tais evidências, começamos a explorar os evangelhos, o contexto
histórico do Novo Testamento e os escritos dos antigos padres da
Igreja.
XII
O REI-SACERDOTE QUE NUNCA REINOU
A maioria das pessoas hoje fala de cristandade como se se tratasse
de uma coisa específica, uma entidade coerente, homogênea e
unificada. É desnecessário dizer que cristandade não é nada disto.
Como todos sabem, existem numerosas formas de cristandade, como
o catolicismo romano e a igreja anglicana, iniciada por Henrique VIII.
Existem as várias outras denominações do protestantismo, desde o
luteranismo e o calvinismo, originados no século XVI, até
desenvolvimentos relativamente recentes, como o unitarismo. Existem
múltiplas congregações evangélicas, como os adventistas do sétimo
dia e as testemunhas de Jeová. E existem diversas seitas e cultos,
como os filhos de Deus e a Igreja da Unificação do reverendo Moon.
Se pesquisarmos este amplo espectro de crenças - desde as
rigidamente dogmáticas e conservadoras até as radicais - fica difícil
determinar o que exatamente constitui a cristandade.
Se é que existe um único fator que nos permita falar de cristandade,
um fator que ligue as diversas e divergentes crenças, este é o Novo
Testamento, e mais particularmente a condição singular atribuída no
Novo Testamento a Jesus, sua crucificação e ressurreição. Mesmo os
que não subscrevem a verdade literal ou histórica desses eventos, se
aceitam sua importância simbólica, são considerados cristãos.
Assim, se existe uma unidade no difuso fenômeno chamado
cristandade, ela reside no Novo Testamento, e, mais especificamente,
nas narrativas sobre Jesus conhecidas como os quatro Evangelhos.
Estas narrativas são popularmente consideradas as de maior
autoridade já registradas; muitos cristãos as consideram coerentes e
incontestáveis. Desde a infância se é levado a acreditar que a história
de Jesus, na forma como é preservada nos Evangelhos, é definitiva,
se não inspirada por Deus. Os quatro evangelistas, supostos autores
dos Evangelhos, são tidos como testemunhas inexpugnáveis que se
reforçam e confirmam entre si. Entre as pessoas que hoje se
denominam cristãs, relativamente poucas sabem que os quatro
Evangelhos não somente se contradizem como, às vezes, discordam
violentamente entre si.
No que diz respeito à tradição popular, a origem e o nascimento de
Jesus são bem conhecidos. Mas os Evangelhos, nos quais essa
tradição é baseada, são consideravelmente mais vagos sobre esse
assunto. Somente dois dos Evangelhos - Mateus e Lucas - dizem
alguma coisa sobre a origem e o nascimento de Jesus; e se
contestam flagrantemente. De acordo com Mateus, por exemplo,
Jesus era um aristocrata, se não um rei legítimo e de direito -
descendente de Davi, via Salomão; de acordo com Lucas, a família de
Jesus, embora descendente da casa de Davi, era de uma classe
menos elevada. Com base na narrativa de Marcos, por outro lado,
surgiu a lenda do "pobre carpinteiro". São genealogias tão
discordantes que podem inclusive estar se referindo a duas pessoas
bem diferentes.
As discrepâncias entre os Evangelhos não se esgotam na questão da
genealogia de Jesus. De acordo com Lucas, Jesus, recém-nascido, foi
visitado por pastores; de acordo com Mateus, foi visitado por reis. De
acordo com Lucas, a família de Jesus vivia em Nazaré. A partir daí se
diz que eles teriam viajado - para um censo que a história sugere
nunca ter ocorrido - a Belém, onde Jesus nasceu numa pobre
manjedoura. Mas, de acordo com Mateus, a família de Jesus havia
sido abastada e residira em Belém todo o tempo; Jesus havia nascido
em uma casa. Nessa versão, a perseguição de Herodes aos inocentes
impele a família a partir para o Egito, e só depois de seu retorno eles
vivem em Nazaré.
Em cada uma dessas narrativas as informações são bastante
específicas. Assumindo que o censo tenha de fato ocorrido, elas são
perfeitamente plausíveis, embora discordantes. Esta contradição não
pode ser racionalizada. Não há como as duas narrativas conflitantes
serem corretas, e não há como reconciliá-las. Queiramos admiti-lo ou
não, deve ser reconhecido o fato de que um dos Evangelhos está
errado, ou ambos estão. Em face de tão inevitável conclusão, os
Evangelhos não podem ser considerados incontestáveis. Como
podem sê-lo se se impugnam um ao outro?
Quanto mais se estudam os Evangelhos, mais claras se tornam as
contradições entre eles. Não concordam entre si nem mesmo quanto à
data da crucificação. De acordo com o Evangelho de João, ela ocorreu
no dia anterior ao da celebração da libertação dos escravos judeus no
Egito. De acordo com os Evangelhos de Marcos, Lucas e
Mateus, ocorreu um dia depois. Tampouco os Evangelhos estão de
acordo em relação à personalidade e ao caráter de Jesus: um
salvador humilde como um cordeiro (Lucas), um poderoso e
majestoso soberano, que veio "trazer a espada e não a paz" (Mateus).
Existe outra discordância sobre as últimas palavras de Jesus na cruz.
Em Mateus e em Marcos estas palavras foram: "Meu Deus, Meu
Deus, por que me abandonastes?" Em Lucas, foram: "Pai, perdoai-os,
pois eles não sabem o que fazem." Em João, simplesmente: "Está
terminado.”
Dadas tais discrepâncias, os Evangelhos só podem ser considerados
uma autoridade altamente questionável e certamente não definitiva.
Não representam a palavra perfeita de nenhum Deus; ou, se o fazem,
as palavras de Deus têm sido censuradas, editadas, revisadas,
glosadas e reescritas, de forma muito liberal, por mãos humanas. A
Bíblia, deve ser lembrado - e isto se aplica ao Velho e ao Novo
Testamento -, é uma seleção de trabalhos e, em muitos aspectos,
uma seleção arbitrária. Na realidade, ela poderia bem conter muito
mais livros e escritos do que de fato contém. E não é uma questão de
livros que tenham sido perdidos. Pelo contrário. Houve os
deliberadamente excluídos. Em 367 d.C., o bispo Athanasius de
Alexandria compilou uma série de trabalhos para serem incluídos no
Novo Testamento. Esta lista foi ratificada pelo Conselho da Igreja de
Hippo, em 393, e novamente pelo Concílio de Cartago quatro anos
depois. Nestes conselhos uma seleção foi aceita. Alguns trabalhos
foram reunidos para formar o Novo Testamento como nós o
conhecemos hoje, outros foram rudemente ignorados. Como pode tal
processo de seleção ser considerado definitivo? Como poderia um
conclave de clérigos decidir infalivelmente que alguns livros
pertenciam à Bíblia e outros não? Especialmente quando alguns dos
livros excluídos possuem uma aspiração, perfeitamente válida, à
veracidade histórica?
Na forma como existe hoje, a Bíblia é o produto de um processo
seletivo mais ou menos arbitrário. Além disso, tem sido também
sujeita a uma editoração, censura e revisão razoavelmente drásticas.
Em 1958, por exemplo, o professor Morton Smith, da Universidade de
Columbia, descobriu, em um monastério próximo a Jerusalém, uma
carta que continha um fragmento inédito do Evangelho de Marcos. O
fragmento não tinha sido perdido, mas aparentemente suprimido, sob
a instigação, se não pedido expresso, do bispo Clemente de
Alexandria, um dos mais venerados antigos padres da Igreja.
Clemente, parece, tinha recebido uma carta de um certo Theodore,
que reclamava de uma seita gnóstica, os carpocracianos. Os
carpocracianos pareciam estar interpretando algumas passagens do
Evangelho de Marcos segundo seus próprios princípios, que não
estavam de acordo com a posição de Clemente e de Theodore. Como
conseqüência, Theodore aparentemente os atacou e registrou sua
ação junto a Clemente. Na carta encontrada pelo professor Smith,
Clemente responde a seu discípulo da seguinte forma:
Você fez bem em silenciar os indescritíveis ensinamentos dos
carpocracianos. Pois estes são as "estrelas errantes" da profecia, que
se desviam da estrada estreita dos mandamentos para um abismo
sem fronteiras de pecados carnais. Pois, orgulhando-se de seu
conhecimento, como eles dizem, "das profundas [coisas] de Satã",
eles não sabem que estão se jogando no "baixo mundo da escuridão"
da falsidade, e, vangloriando-se de serem livres, eles se tornaram
escravos de desejos servis. Tais [homens] devem ser combatidos de
todas as maneiras e completamente. Pois, mesmo que eles digam
alguma verdade, quem ama a verdade não deve, mesmo assim,
concordar com eles. Pois nem todas as verdadeiras [coisas] são a
verdade, nem deveria aquela verdade que [meramente] parece
verdadeira segundo opiniões humanas ser preferida à verdade
absoluta, aquela da fé.
Trata-se de uma afirmação extraordinária para um padre. De fato,
Clemente está dizendo nada menos que, "se seu oponente estiver
dizendo a verdade, você deve negá-la e mentir para refutá-lo". Mas
isto não é tudo. Na passagem que se segue, a carta de Clemente
continua discutindo o Evangelho de Marcos e seu "mau uso" pelos
carpocracianos:
[Quanto a] Marcos, então, durante a estada de Pedro em Roma, ele
escreveu [uma narrativa sobre] os feitos do Senhor, sem contudo
declarar todos, nem ainda insinuar os secretos, mas selecionando
aqueles que ele pensou mais úteis para aumentar a fé dos que
estavam sendo instruídos. Mas quando Pedro morreu como um mártir,
Marcos veio a Alexandria, trazendo suas notas e aquelas de Pedro,
das quais ele transferiu para o seu livro anterior as coisas adequadas
ao que quer que leve a progressos na direção do conhecimento
[gnose]. [Então] ele compôs para uso um Evangelho mais espiritual
que aqueles que estavam sendo aperfeiçoados. Entretanto, ele não
divulgou as coisas que não deviam ser pronunciadas, nem escreveu
os ensinamentos hierophanticos do Senhor, mas às histórias já
escritas ele adicionou outras e, além disso, trouxe alguns dizeres dos
quais ele sabia que a interpretação guiaria os ouvintes até os mais
recônditos santuários da verdade oculta pelos sete [véus]. Então, em
suma, ele pré-arranjou assuntos, nem de má vontade nem de forma
incauta, em minha opinião, e, ao morrer, ele deixou sua composição
na igreja de Alexandria, onde ela é ainda mais cautelosamente
guardada, sendo lida somente por aqueles iniciados nos grandes
mistérios.
Mas como os loucos demônios estão sempre planejando destruição
para a raça humana, Carpocrates, instruído por eles e utilizando-se de
artes malévolas, escravizou alguns presbíteros da igreja de Alexandria
de tal modo que conseguiu uma cópia do Evangelho secreto, que ele
interpretou segundo sua doutrina blasfema e carnal e, além disso,
poluiu, misturando palavras límpidas e sagradas com vergonhosas
mentiras.
Assim, Clemente reconheceu livremente que existe um
autêntico evangelho secreto de Marcos. E instruiu Theodore a negá-lo:
Àqueles [os carpocracianos], desta forma, como eu disse antes, não
se deve dar trégua jamais. Quando eles lançam suas falsificações,
não devemos conceder que o Evangelho secreto é o de Marcos, mas
devemos sempre negá-lo sob juramento. Pois "nem todas as
verdadeiras [coisas] devem ser ditas a todos os homens".
O que era este "evangelho secreto" que Clemente ordenou a seu
discípulo repudiar e que os carpocracianos estavam interpretando de
forma má? Clemente responde a pergunta ao incluir a transcrição
do texto, palavra por palavra, em sua carta:
Para você, eu não hesitarei em responder [às perguntas] que
perguntou, refutando todas as falsificações pelas verdadeiras palavras
do Evangelho. Por exemplo, depois de "E eles seguiram na estrada
que ia para Jerusalém" e o que se segue, até "Depois de três dias ele
subirá", [o Evangelho secreto] traz o seguinte [material] palavra por
palavra:
"E eles chegam a Betânia, e uma mulher, cujo irmão havia morrido,
estava lá. E, vindo, ela se prostrou ante Jesus e lhe disse: filho de
Davi, tenha piedade de mim. Mas os discípulos a empurraram. E
Jesus, ficando com raiva, foi com ela até o jardim onde estava a
tumba e, imediatamente, um grande grito foi ouvido da tumba.
Chegando perto, Jesus afastou a pedra da porta da tumba. E
imediatamente, indo na direção de onde estava o jovem, ele estendeu
sua mão e o levantou, segurando-o pela mão. Mas o jovem, olhando
para ele, o amou e começou a implorar que pudesse segui-lo. E
saindo da tumba eles foram para a casa do jovem, pois ele era rico. E
depois de seis dias, Jesus lhe disse o que fazer e à noite o jovem foi
ter com ele, usando uma roupa de linho sobre [seu corpo] nu. E ele
permaneceu com ele aquela noite, pois Jesus ensinou-lhe o mistério
do reino de Deus. E então, se levantando, ele retornou ao outro lado
do Jordão."
Este episódio não aparece em nenhuma versão do Evangelho de
Marcos. Entretanto, é bastante familiar em suas linhas gerais. Existe,
é claro, a cura de Lázaro, descrita no quarto Evangelho, atribuído a
João. Na versão citada, contudo, existem algumas variações
significativas. Em primeiro lugar, existe um "grande grito" na tumba
antes que Jesus afaste a rocha ou instrua seu ocupante a levantar-se.
Isto sugere que o ocupante não estava morto, negando assim
qualquer elemento miraculoso. Em segundo lugar, no episódio de
Lázaro parece haver algo mais do que as narrativas aceitas nos levam
a acreditar. Certamente, a passagem citada atesta alguma relação
especial entre o homem na tumba e o homem que o "ressuscita". Um
leitor moderno talvez seja tentado a ver uma insinuação de
homossexualidade. É possível que os carpocracianos - uma seita que
aspirava à transcendência dos sentidos por meio da saciedade -
discernisse precisamente tal insinuação. Mas, como argumenta o
professor Smith, é na realidade muito mais provável que todo o
episódio se refira a uma iniciação, uma morte e renascimento rituais e
simbólicos, de um tipo muito comum no Oriente Médio da época.
Em todo caso, o aspecto central é que o episódio, e a passagem
citada acima, não aparece em nenhuma versão moderna ou aceita de
Marcos. Realmente, as únicas referências a Lázaro, ou a um
personagem chamado Lázaro, no Novo Testamento estão no
Evangelho atribuído a João. Fica assim evidente que o conselho de
Clemente foi aceito, não somente por Theodore, mas também por
autoridades posteriores. O incidente com Lázaro foi completamente
excluído do Evangelho de Marcos.
Se o Evangelho de Marcos foi tão dramaticamente expurgado, ele foi
também carregado com adições espúrias. Em sua versão original ele
termina com a crucificação, o enterro e a tumba vazia. Não existe a
cena da ressurreição, ou a reunião com os discípulos. Algumas Bíblias
modernas contêm um final mais convencional para o Evangelho de
Marcos, incluindo a ressurreição. Mas praticamente todos os
estudiosos da Bíblia concordam em que este final expandido é uma
adição posterior, datada do final do século II e anexada ao documento
original.
O Evangelho de Marcos fornece, portanto, dois momentos de um
documento sagrado - supostamente inspirado por Deus - que tem sido
alterado, editado, censurado, revisado por mãos humanas. Em ambos
os casos não se trata de uma especulação, mas de algo considerado
provado por estudiosos. Pode-se então supor que o Evangelho de
Marcos tenha sido o único a sofrer alterações? Se o Evangelho de
Marcos foi tão prontamente manuseado, é razoável assumir que os
outros Evangelhos foram tratados de forma similar.
Para os propósitos de nossa investigação, não podíamos aceitar os
Evangelhos como uma autoridade definitiva e inexpugnável, mas
tampouco podíamos descartá-los. É certo que eles não foram
totalmente fabricados e fornecem algumas das poucas pistas
disponíveis sobre o que realmente ocorreu na Terra Santa dois mil
anos atrás. Assim, nos engajamos em olhá-lo mais de perto, em
buscar através deles, em discernir fatos e fábulas, em separar a
verdade que eles contêm e a matriz espúria na qual essa verdade foi
embebida. Para fazê-lo com eficiência, fomos primeiro obrigados a
nos familiarizar com a realidade histórica e as circunstâncias da Terra
Santa no advento da era cristã.
Pois os Evangelhos não são entidades autônomas, flutuantes, eternas
e universais, conjuradas do nada através dos séculos. São
documentos históricos, como outros - como os Manuscritos do Mar
Morto, os épicos de Homero e Virgílio, os romances sobre o cálice.
São produto de um lugar muito específico, um tempo muito específico,
um povo muito específico e fatores históricos muito específicos.
A Palestina no Tempo de Jesus
No século I, a Palestina era um pedaço muito agitado do mundo.
Durante algum tempo aTerra Santa tinha sido varrida por desavenças
dinásticas, conflitos destruidores e, ocasionalmente, guerras. Durante
o século II a.C., um reino judaico mais ou menos unificado foi
estabelecido transitoriamente, segundo os dois livros apócrifos dos
Macabeus. Por volta de 63 a.C., contudo, a terra estava novamente
em turbulência, madura para a conquista.
Mais de um quarto de século antes do nascimento de Jesus, a
Palestina caiu sob o exército de Pompeu, e a lei romana foi imposta.
Mas Roma, na época muito extensa e muito preocupada com seus
próprios problemas, não estava em condições de instalar ali o
aparelho administrativo necessário para um governo direto. Assim, ela
criou uma linha de reis marionetes - a dos herodianos - para governar
sob seu controle. Não eram judeus, mas árabes. O primeiro da linha
foi Antipater, que assumiu o trono da Palestina em 63 a.C. Com sua
morte, em 37 a.C., ele foi sucedido por seu filho Herodes, o Grande,
que reinou até 4 a.C. Deve-se visualizar, então, uma situação análoga
àquela da França sob o governo de Vichy entre 1940 e 1944: uma
terra e um povo conquistados, governados por um regime marionete
mantido no poder por força militar. O povo do país podia manter sua
própria religião e costumes. Mas a autoridade final era Roma. Esta
autoridade era implementada segundo a lei romana e reforçada pelo
exército romano, como aconteceu na Inglaterra pouco depois.
No ano 6 d.C. a situação se tornou mais crítica. O país foi então
dividido administrativamente em duas províncias, Judéia e Galiléia.
Herodes Antipas tornou-se o rei desta última. Mas Judéia - a capital
espiritual e secular - ficou sujeita à norma romana direta, administrada
por um procurador romano baseado em Cesarea. O regime era brutal
e autocrático. Ao assumir o controle direto da Judéia, mais de 2 mil
rebeldes foram sumariamente crucificados. O Templo foi saqueado e
destruído. Impostos pesados foram criados. A tortura passou a ser
freqüentemente empregada, e muita gente cometia suicídio. Este
estado de coisas não foi melhorado por Pôncio Pilatos, procurador da
Judéia de 26 d.C. até 36 d.C. Em contraste com os retratos bíblicos
feitos dele, os registros existentes indicam que Pilatos era um homem
corrupto e cruel, que não só perpetuou, mas intensificou os abusos de
seu predecessor. Pelo menos à primeira vista, é surpreendente que os
Evangelhos não contenham críticas a Roma, nem menções ao peso
da canga romana, sugerindo que os habitantes da Judéia eram
plácidos e contentes com sua sina.
Na verdade, poucos estavam contentes, e muitos estavam longe de
ser plácidos. Os judeus da Terra Santa, na época, podiam ser
divididos em várias seitas e subseitas. Havia, por exemplo, os
saduceus, uma classe de pequenos mas abastados proprietários de
terras que, para desprazer de seus compatriotas, colaboravam de
forma insidiosa com os romanos. Havia os fariseus, um grupo
progressista que introduziu muitas reformas no judaísmo e que,
apesar de seu retrato nos Evangelhos, se colocava em uma oposição
teimosa, embora passiva, a Roma. Havia os essênios, uma seita
austera, misticamente orientada, cujos ensinamentos eram mais
prevalentes e influentes do que é geralmente admitido ou suposto.
Entre as seitas e subseitas menores havia muitas cujo caráter preciso
se perdeu há muito tempo na história e que, por isso, são difíceis de
definir. Vale a pena citar os nazoritas, contudo, dos quais Sansão,
séculos antes, tinha sido membro, e que ainda existiam no tempo de
Jesus. E vale a pena citar os nazoreanos ou nazarenos, um termo que
parece ter sido aplicado a Jesus e seus seguidores. Realmente, a
versão original grega do Novo Testamento se refere a "Jesus, o
nazareno", expressão mal traduzida como "Jesus de Nazaré".
Nazareno, em suma, diz respeito a uma seita, sem conexão com
Nazaré.
Existiam ainda numerosos outros grupos e seitas, um dos quais
mostrou-se particularmente relevante em nossa pesquisa. Em 6 d.C.,
quando Roma assumiu o controle direto da Judéia, um fariseu rabino
conhecido como Judas da Galiléia tinha criado um grupo
revolucionário altamente militante, conhecido como zelote e composto,
parece, de fariseus e de essênios. Os zelotes não eram, estritamente
falando, uma seita. Eram um movimento, com filiados de várias seitas.
Tendo assumido gradativamente um papel de destaque nos assuntos
da Terra Santa, suas atividades formavam talvez o mais importante
pano de fundo contra o qual o drama de Jesus aconteceu.
Muito tempo depois da crucificação, as atividades dos zelotes
continuaram inalteradas. Por volta de 44 d.C., estas atividades tinham
se intensificado de tal modo que algum tipo de luta armada já
parecia inevitável. Em 66 d.C. a luta irrompeu, toda a Judéia se
levantando em revolta organizada contra Roma. Foi um conflito
desesperado, tenaz, mas inútil. Vinte mil judeus foram massacrados
pelos romanos só em Cesarea. Em quatro anos as legiões romanas
ocuparam Jerusalém, arrasando a cidade, saqueando e destruindo o
Templo. Entretanto, a fortaleza montanhosa de Masada resistiu por
mais três anos, comandada por um descendente de Judas da Galiléia.
Depois da revolta houve um êxodo massivo de judeus da Terra Santa.
Entretanto, um número suficiente permaneceu para fomentar outra
rebelião cerca de sessenta anos mais tarde, em 132 d.C. Finalmente,
em 135 d.C., o imperador Hadrian decretou que todos os judeus
deviam ser expulsos da Judéia por lei, e Jerusalém tornou-se uma
cidade essencialmente romana, sendo rebatizada com o nome de
Aelia Capitolina.
A vida de Jesus se passou nos primeiros 35 anos, mais ou menos, de
um turbilhão que se estendeu por 140 anos. O turbilhão não cessou
com sua morte, mas continuou por mais um século. E gerou as
expectativas psicológicas e culturais inevitáveis em tal situação de
enfrentamento com um opressor. Uma destas expectativas era a
esperança e espera de um Messias que libertasse seu povo do jugo
romano. Foi somente em virtude de um acidente histórico e semântico
que este termo veio a ser aplicado específica e exclusivamente a
Jesus.
Para os contemporâneos de Jesus, nenhum Messias seria jamais
considerado divino. Na realidade, a própria idéia de um Messias divino
teria sido extravagante, se não impensável. A palavra grega para
Messias é Christ ou Christos. O termo - em hebreu ou grego - significa
simplesmente "abençoado" e se refere geralmente a um rei. Assim,
quando Davi foi abençoado rei no Velho Testamento, ele se tornou
explicitamente um Messias ou um Christ. E todos os reis judeus
subseqüentes, da casa de Davi, eram conhecidos pelo mesmo nome.
Mesmo durante a ocupação romana da Judéia, o alto sacerdote
nomeado por Roma era conhecido como sacerdote Messias ou reisacerdote.
Todavia, para os zelotes e para outros oponentes de Roma, este
sacerdote marionete era, necessariamente, um falso Messias. Para
eles, o verdadeiro Messias significava algo muito diferente - o legítimo
roi perdu, O descendente desconhecido da casa de Davi, que
libertaria seu povo da tirania romana. Durante a vida de Jesus, a
espera da vinda de tal Messias atingiu uma intensidade que beirava à
histeria de massas. Esta espera continuou após a morte de Jesus.
Realmente, a revolta de 66 d.C. foi instigada em grande parte pela
agitação e propaganda feita pelos zelotes em nome de um Messias
cujo advento seria iminente.
O termo Messias, então, não significava divino. Estritamente definido,
significava simplesmente um rei abençoado; e, na mentalidade
popular, veio a significar um rei abençoado que seria também um
libertador. Em outras palavras, era um termo de conotação
especificamente política, algo bem diferente da idéia cristã posterior
de um "filho de Deus". Este termo, essencialmente mundano, foi
usado para Jesus, chamado "Jesus, o Messias" ou - traduzido para o
grego "Jesus, o Cristo". Só mais tarde é que esta designação se
contraiu para "Jesus Cristo", e um título puramente funcional se
distorceu em um nome próprio.
A História dos Evangelhos
Os Evangelhos surgiram de uma realidade histórica reconhecível e
concreta; uma realidade de opressão, descontentamento cívico e
social, ansiedade política, perseguições incessantes e rebeliões
intermitentes. Tratava-se também de uma realidade pontilhada de
promessas perpétuas e tentadoras, de esperanças e sonhos: um rei
justiceiro apareceria, um líder espiritual e secular que conduziria seu
povo à liberdade. Em relação à liberdade política, tais aspirações
foram brutalmente extintas pela guerra devastadora que ocorreu entre
66 d.C. e 74 d.C. Contudo, quando transpostas para a forma
totalmente religiosa, as aspirações foram não só perpetuadas pelos
Evangelhos como receberam um novo e poderoso ímpeto.
Os estudiosos modernos são unânimes em dizer que os Evangelhos
não são do tempo de Jesus. Datam, em sua maior parte, do período
entre as duas principais revoltas na Judéia - 66 a 74 d.C. e 132 a 135
d.C. -, sendo quase certamente baseados em narrativas anteriores.
Estas narrativas podem ter incluído documentos escritos que se
perderam, pois houve uma destruição massiva dos registros no
despertar da primeira revolta. Mas havia, certamente, tradições orais.
Algumas eram grosseiramente exageradas e/ou distorcidas, recebidas
e transmitidas de segunda, terceira ou quarta mão. Outras, contudo,
podem ter derivado de pessoas que viveram na época de Jesus e
podem tê-lo conhecido pessoalmente. Um homem que fosse jovem no
tempo da crucificação pode ter vivido também na época em que os
Evangelhos foram escritos.
O primeiro dos Evangelhos é geralmente considerado como sendo o
de Marcos, escrito durante a revolta de 66-74 d.C. ou logo
depois, exceto por seu tratamento da ressurreição, que é uma adição
posterior e espúria. Embora ele próprio não tenha sido um dos
discípulos originais de Jesus, Marcos parece ter vindo de Jerusalém.
Parece ter sido companheiro de São Paulo, e seu Evangelho porta o
caráter inconfundível do pensamento paulino. Mas se Marcos era
nativo de Jerusalém, seu Evangelho - como afirma Clemente de
Alexandria - foi escrito em Roma e endereçado a uma audiência
greco-romana. Isto, por si só, explica muita coisa. Na época em que o
Evangelho de Marcos foi composto, a Judéia estava, ou tinha estado
recentemente, em plena revolta, e milhares de judeus estavam sendo
crucificados por se rebelarem contra o regime romano. Se Marcos
quisesse que seu Evangelho sobrevivesse e se impusesse a uma
audiência romana, não podia de forma alguma apresentar Jesus como
um anti-romano. Não podia apresentar um Jesus politicamente
orientado. Para assegurar a sobrevivência de sua mensagem, ele foi
obrigado a aliviar os romanos de toda a culpa pela morte de Jesus,
limpando o regime e culpando alguns judeus pela morte do Messias.
Este artifício foi adotado não somente pelos autores dos outros
Evangelhos, mas também pela antiga Igreja cristã. Sem tal artifício,
nem os Evangelhos nem a Igreja teriam sobrevivido.
Estudiosos datam o Evangelho de Lucas em aproximadamente 80
d.C. Lucas parece ter sido um médico grego que compôs seu trabalho
para um oficial romano de alto escalão em Cesarea, a capital romana
da Palestina. Assim, também para Lucas teria sido necessário aplacar
e apaziguar os romanos, transferindo a culpa para outro lugar. Na
época em que o Evangelho de Mateus foi composto -
aproximadamente, 85 d.C. - tal transferência parece ter sido aceita
como um fato estabelecido e não foi questionada. Mais da metade do
Evangelho de Mateus, de fato, deriva diretamente do de Marcos,
embora este tenha sido composto originalmente em grego e reflita
características especificamente gregas. O autor parece ter sido um
judeu, possivelmente um refugiado da Palestina. Ele não deve ser
confundido com o discípulo chamado Mateus, que viveu muito antes,
provavelmente falando só o aramaico.
Os Evangelhos de Marcos, Lucas e Mateus são conhecidos
coletivamente como os "Evangelhos sinópticos", significando que eles
vêem "olho no olho", ou "com um olho" - o que, é claro, não fazem.
Entretanto, existem superposições suficientes entre eles para sugerir
que sejam derivados de uma fonte comum, uma tradição oral ou
algum outro documento perdido depois. Isto os distingue do
Evangelho de João, no qual transparecem origens diferentes.
Nada se sabe sobre o autor do quarto Evangelho. Não existem razões
para supor que seu nome tenha sido João. Com exceção de
João Batista, o nome João não é mencionado em nenhuma passagem
do Evangelho. A atribuição desse Evangelho - o último do Novo
Testamento, composto por volta de 100 d.C. nas vizinhanças de
Éfeso, na Turquia - a um homem chamado João é geralmente aceita
como uma tradição posterior. Esse quarto Evangelho revela várias
características singulares. Não há nele, por exemplo, a cena de natal,
nenhuma descrição do nascimento de Jesus, e a introdução é quase
gnóstica. O texto é decididamente de natureza mais mística do que o
dos outros Evangelhos, e o conteúdo também difere. Os outros, por
exemplo, se concentram primariamente nas atividades de Jesus na
província a nordeste da Galiléia e refletem o que parece ser um
conhecimento de segunda ou terceira mão dos eventos no sul, na
Judéia e em Jerusalém, incluindo a crucificação. O quarto Evangelho,
em contraste, diz relativamente pouco sobre a Galiléia. Lida
exaustivamente com os eventos na Judéia e em Jerusalém, que
concluem a carreira de Jesus, e sua narrativa da crucificação pode se
basear em algum testemunho ocular. Também contém vários
episódios e incidentes que não figuram nos outros Evangelhos: o
casamento de Canaã, os papéis de Nicodemus e de José de
Arimatéia, e a cura de Lázaro (embora este último tenha sido incluído
no Evangelho de Marcos). Com base em tais fatores, estudiosos
modernos têm sugerido que o Evangelho de João, a despeito de sua
composição tardia, pode ser o mais fidedigno e historicamente
acurado dos quatro. Mais do que os outros Evangelhos, ele
parece originar-se de tradições correntes entre contemporâneos de
Jesus, bem como de outros materiais inacessíveis a Marcos, Lucas e
Mateus. Um estudioso moderno observa que o texto reflete um
conhecimento topográfico aparentemente de primeira mão da
Jerusalém de antes da revolta de 66 d.C. O mesmo autor conclui: "Por
trás do quarto Evangelho existe uma velha tradição independente dos
outros Evangelhos." Não é uma opinião isolada, mas a que prevalece
entre os estudiosos da Bíblia. De acordo com outro autor, "o
Evangelho de João, embora diferente da moldura cronológica de
Marcos e mais tardio, parece conhecer uma tradição relacionada com
Jesus que deve ser primitiva e autêntica".
Com base em nossa própria pesquisa, também concluímos que o
quarto Evangelho era o mais fidedigno dos livros do Novo Testamento
- embora ele tenha sido, como os outros, sujeito a alterações, edições,
expurgos e revisões. Em nossa investigação, tivemos a ocasião de
estudar os quatro Evangelhos, assim como muito material colateral.
Mas foi no quarto Evangelho que encontramos as evidências mais
persuasivas para nossa hipótese.

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